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Crítica

A Lenda de Candyman é filmaço que firma franquia como manifesto antirracista

Sequência direta do filme de 1992 entende essência do personagem para além da vilania

26.08.2021, às 12H07.
Atualizada em 29.08.2021, ÀS 15H05

O crítico Roger Ebert (1942-2013) via o cinema como uma máquina de empatia. Segundo essa visão romântica, a tela grande é ferramenta para se conhecer o novo, abraçar o diferente, quebrar barreiras e começar a construir algo melhor. Em A Lenda de Candyman, a diretora Nia DaCosta, que também escreve o filme ao lado do produtor Jordan Peele e de Win Rosenfeld, tira o máximo desse potencial para a construção de uma obra-prima moderna de horror, socialmente consciente e munida de mensagens essenciais para o momento que vivemos no século XXI. Partindo de uma história que inadvertidamente tornou-se emblemática pelo tratamento de questões de raça, classe e gênero, ela entrega uma sequência direta que consolida a franquia como um manifesto antirracista.

Embora tenha surgido no conto "The Forbidden", do escritor britânico Clive Barker, foi pelas mãos do diretor conterrâneo Bernard Rose e do astro norte-americano Tony Todd que Candyman tomou a forma que conhecemos hoje. Para O Mistério de Candyman (1992), o personagem foi tirado da Inglaterra e levado aos Estados Unidos, trocou um decadente conjunto habitacional de classe média por um conjunto habitacional historicamente marginalizado, tornou-se um homem preto e, mais importante, foi aprofundado como um vilão trágico: o produto de um crime de ódio; uma entidade movida por vingança que, não por acaso, se sustenta com a mesma podridão social que o vitimou.

Graças à interpretação de Todd e ao retrato de desigualdade no bairro de Cabrini-Green, em Chicago, o filme original enriqueceu a obra de Barker e foi além do conto de horror sobre lendas urbanas para incorporar discussões sobre o preconceito e a exclusão. Em primeiro plano, entretanto, permanecia a história de Helen Lyle (Virginia Madsen), uma mulher branca, acadêmica, que guiava o mergulho nessas temáticas a partir da contraposição com seus privilégios inatos. Revisitar o filme original hoje é se deparar com uma série de artifícios datados, como o uso do clichê do "salvador branco" ou o reforço de estereótipos raciais. Com outros dois filmes reduzindo o personagem a mais um assassino slasher genérico, havia espaço para uma retomada do clássico a partir de uma perspectiva artística negra - exatamente o que fazem agora DaCosta, Peele e Rosenfeld em A Lenda de Candyman.

Espelhando a trama de Helen no filme original, a produção coloca o artista plástico Anthony McCoy (Yahya Abdul-Mateen II) no caminho da lenda urbana do personagem-título: uma figura sobrenatural que mata todos aqueles que repetem seu nome, em frente a um espelho, cinco vezes seguidas. Famoso por seus quadros sobre o racismo nos Estados Unidos, o pintor atravessa uma longa crise criativa que coloca sob pressão seu relacionamento com Brianna Cartwright (Teyonah Parris), uma jovem diretora de galeria de arte em ascensão. Embora o cenário pareça mudar para melhor quando uma visita ao bairro de Cabrini-Green volta a despertar sua inspiração, McCoy logo vê a vida desmoronar com a volta de Candyman.

Fãs do original ficarão em êxtase com o respeito que DaCosta, Peele e Rosenfeld exibem por ele, entrelaçando as duas histórias a ponto de recriar momentos-chave em um fantasmagórico (e lindíssimo) teatro de sombras. O retorno de Vanessa Estelle Williams e a arrepiante homenagem a Tony Todd são as melhores amostras do equilíbrio que A Lenda de Candyman encontra entre o fan service e a nova história contada; mesmo com tanta nostalgia, o filme deve funcionar plenamente para um novo público. A trama ainda volta a desenvolver e sustentar a mesma dúvida entre secular e sobrenatural que permeava o clássico, elevando a expectativa por um desfecho que traga uma conclusão prática. Nessa mistura, o filme preserva no arco de Parris a reflexão sobre gênero e sugere variações, como trocar a sátira ao academicismo, flagrante no arco de Helen em 1992, pela crítica ao universo artístico (pense em Velvet Buzzsaw, só que com algo a dizer) de forma ainda mais mordaz.

Teyonah Parris, aliás, protagoniza a cena mais forte e assustadora de todo o filme. É tranquilamente um dos grandes momentos do horror neste século; uma passagem que deveria ser exibida e discutida em salas de aula pelo que traduz e representa, coroando uma atuação segura que ajuda a enraizar o surrealismo do filme. Já Abdul-Mateen II pode aqui mostrar outro lado de seus talentos, depois de roubar a cena em Watchmen. Protagonista, ele é o espelho de Parris na trama, conduzindo muitos dos momentos mais descolados da realidade e apresentando em diferentes estilos de terror (do psicológico ao body horror) a derrocada de um homem bom à decadência promovida pelo Candyman. Brilha também o experiente Colman Domingo, que empresta sua poderosa voz à maior dose de exposição do roteiro, fazendo essa função narrativa por vezes cansativa se esconder sob uma atuação operística e um arco rico, ligado ao passado de Cabrini-Green.

Universal Pictures/Divulgação

A decisão de situar a história no mesmo bairro em que se passa o filme original, aliás, abre espaço para reflexões sobre gentrificação, marginalização, e como a população predominantemente preta de áreas periféricas é feita de massa de manobra pela especulação imobiliária. Desde a espetacular cena de abertura, com arranha-céus filmados de ponta cabeça como se refletidos em um espelho, DaCosta mostra a mesma preocupação em situar fisicamente a trama que Barker tinha em seu conto: fazendo de cada ambiente, cada curva, janela, abertura e rachadura, uma ferramenta na imersão em uma história que os trata também como personagens.

Visualmente, aliás, A Lenda de Candyman se sobressai não só pela criatividade de DaCosta no posicionamento de câmera ou na forma como ela fotografa sem pudor uma violência intensa e brutal, mas por trocar o filtro verde recorrente do horror moderno por laranja e amarelo, caprichando em uma direção de arte que também mergulha em cores vivas e prenuncia o vermelho intenso do sangue que inevitavelmente irá jorrar. Quando o gancho de Candyman entra em ação, são raros os planos-detalhes, mas abundam os planos abertos, como que comunicando ao público que a obra de um grande artista deve ser observada em toda a sua dimensão.

Dito tudo isso, o que faz do novo filme um dos melhores lançamentos de horror dos últimos anos é a compreensão que têm DaCosta, Peele e Rosenfeld de que Candyman é um vilão, mas não antes de ser uma vítima e um denunciante das estruturas corrompidas da sociedade. Não porque ele é contrário a elas, mas porque é se valendo delas — das elites que menosprezam e criminalizam os pobres, dos policiais que veem em seus distintivos um veículo para o ódio, do silenciamento promovido pelos privilegiados sobre aqueles que estruturalmente são mantidos sob eles; dos brancos que odeiam os pretos; dos homens que odeiam as mulheres — que ele mantém sua lenda. "O que sabem os bons, exceto o que os maus lhes ensinam com seus excessos?", indagou o personagem, em 1992. Em um momento histórico em que o mundo precisa acordar para horrores muito mais reais que qualquer bicho-papão, A Lenda de Candyman volta a deixá-lo ser um professor.

Nota do Crítico
Excelente!