Milla Jovovich em cena de Resident Evil (Reprodução)

Créditos da imagem: Milla Jovovich em cena de Resident Evil (Reprodução)

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Rever Resident Evil dá saudades da era em que franquias podiam ser uma bagunça

Saga de Paul W.S. Anderson é inconstante, caótica, “ruim”… e absolutamente fascinante

Omelete
6 min de leitura
14.07.2022, às 17H10.

Quase nenhum dos filmes de Resident Evil, franquia ressuscitada pela Netflix em formato de série que chegou ao catálogo hoje (14), entrega uma resolução direta para o gancho deixado no final do longa anterior. A exceção talvez seja Resident Evil 4: Recomeço (2010), cuja sequência inicial mostra Alice (Milla Jovovich) e suas clones, vistas no final de A Extinção (2007), atacando um complexo da Umbrella onde Albert Wesker (Shawn Roberts) está escondido e aparentemente - só aparentemente, claro - conseguindo matá-lo.

Essa é só a introdução do filme, no entanto. Recomeço, como o título dá a entender, não segue o rumo natural da linha narrativa estabelecida nos seus antecessores. Ao invés disso, é uma mudança de curso operada pelo diretor e roteirista Paul W.S. Anderson, quase um reboot - e, de fato, até essa cena inicial serve para esse propósito. Nela, Alice perde os seus poderes telecinéticos e tem suas clones massacradas pelos seguranças da Umbrella, efetivamente descartando grande parte da evolução narrativa da trilogia original.

O que se segue em Recomeço é uma ressignificação de Resident Evil nos termos das obsessões que Anderson nutria na época. O 3D, ferramenta usada na franquia só a partir desse 4º filme, quase exige um visual mais “sujo”, pós-apocalíptico por natureza em sua artificialidade de tela verde. Tematicamente, um Anderson pós-Alien vs. Predador e Corrida Mortal destila seu veneno contra Hollywood, realocando sua história para Los Angeles e incluindo personagens envolvidos na indústria como exemplo das dinâmicas de poder tortas e do egoísmo que a dominam.

Esse é, mais ou menos, o modus operandi de todos seis longas da franquia. A inconstância é o que define o plot, os visuais e as entrelinhas mais “profundas” (é possível mesmo usar essa palavra com Resident Evil?) dos filmes, assim como os retornos ou não-retornos de personagens, espalhados - com a exceção de Alice, é claro - em aparições esporádicas pelos seis capítulos da saga, tão dependentes do fechamento de contratos com atores quanto da vontade de Anderson de incluí-los na trama da vez.

É uma abordagem diametralmente oposta à que vemos nas maiores marcas de Hollywood atualmente, onde o foco é contar uma história unificada e manejar os talentos de uma forma que convincentemente faça o espectador crer que todos esses personagens vivem num mesmo contínuo narrativo. Resident Evil, enfim,é relíquia de uma era em que “universo compartilhado” significava, no máximo, Lisa Kudrow interpretando irmãs gêmeas em Friends e Louco Por Você.

Prós e contras

Milla Jovovich em cena de Resident Evil: O Capítulo Final (Reprodução)
Milla Jovovich em cena de Resident Evil: O Capítulo Final (Reprodução)

É fácil, como fã, cantar as virtudes do modelo atual, exemplificado principalmente pelos filmes do Marvel Studios. Não só nossa mente se sente confortável com a constância dessa narrativa única, como ela também provém prazeres inegáveis: primeiro, o cruzamento de mundos e personagens previamente isolados traz à tona interações e dinâmicas que levam a história de cada um deles para lugares inesperados; segundo, é simplesmente muito bacana sentir que você está acompanhando o fluir natural de um universo todo, ao invés de uma única história, através do tempo.

Resident Evil não provém nenhum desses prazeres. O que a franquia oferece, no entanto, é algo que o MCU, por natureza, nunca poderá ter: a fascinação única de acompanhar uma visão artística levada à fruição. Talvez Paul W.S. Anderson não seja uma das grandes sensibilidades cinematográficas da atualidade (embora desprezá-lo totalmente como uma seja um tanto esnobe e precipitado), mas é inegável que há um charme em ver suas obsessões traduzidas em tela, e que é excitante acompanhar uma história em constante metamorfose, que parece estar se entendendo em tempo real diante dos seus olhos.

De fato, Resident Evil não se solidifica como jornada temática até os últimos minutos de O Capítulo Final (2017). É quando o arco de Alice se cristaliza em um abraço ambivalente dos aspectos artificiais e eletrônicos da vida e da identidade contemporâneas, mas um abraço que ocorre somente quando este artificial e este eletrônico se vêem livres da apropriação capitalista - ou de qualquer apropriação, na verdade.

Resident Evil passa seis filmes nos apresentando um mal sintético, nos dizendo para temer vírus criados em laboratórios, modificações genéticas e inteligências artificiais que se manifestam no mundo físico através de lasers, encarnadas em (e, portanto, maculando) uma imagem infantil. No fim, no entanto, nos diz que a ganância ou a apatia de quem criou todas essas ferramentas, de quem é dono delas, é que as fez más.

Pais e filhas

Ever Anderson em cena de Resident Evil: O Último Capítulo (Reprodução)
Ever Anderson em cena de Resident Evil: O Último Capítulo (Reprodução)

A decisão mais simbólica de toda a franquia, inclusive, talvez seja a escalação de Ever Anderson para interpretar a versão redimida da Rainha Vermelha, o computador que fomos ditos para temer lá em O Hóspede Maldito (2002). Para quem não sabe, a jovem atriz é uma das três filhas do diretor Paul W.S. Anderson com a estrela Milla Jovovich, após os dois se conhecerem no set do primeiro filme da saga.

O efeito é arrepiante, traçando o paralelo entre Jovovich, tanto em sua versão “cara limpa” quanto maquiada para parecer idosa (como Alicia, a mulher da qual Alice foi clonada), e a sua própria filha. Em uma reviravolta brilhante, O Capítulo Final faz da Alice que acompanhamos por seis filmes apenas a melhor encarnação de uma identidade que já passou pelo humano, pelo sintético, e de volta outra vez. 

É tudo parte da mesma existência, nos diz Anderson. O Capítulo Final abusa das referências ao mito criacionista cristão, fazendo de Alice uma espécie de Jesus postiço para um mundo distorcido além do reconhecimento por todos os pecados tremendamente humanos que acompanhamos nos longas anteriores. Quando o filme mostra sua Alice, o produto mais perfeito da Umbrella Corporation, matando o vilão Dr. Isaacs (Iain Glen), as últimas palavras dela são simbólicas. “Eu te criei, diz o cientista. Grande erro”, responde nossa heroína. 

Cena de Resident Evil 5: Retribuição (Reprodução)
Cena de Resident Evil 5: Retribuição (Reprodução)

Resident Evil nos diz que existe um caminho futuro de convivência entre natural e artificial, entre nascido e criado, mas ele só é possível se ninguém for dono de ninguém. Não é só que exercer controle sobre uma pessoa esmaga a humanidade que existe dentro dela e substitui a identidade que ela pode construir por um simulacro cruel de existência - é também que esse controle, no fim das contas, é uma ilusão.

Se alguém te dissesse, lá em 2002, que o Resident Evil que você viu nos cinemas, aquele com a Michelle Rodriguez e o vestido vermelho da Alice, seria sobre tudo isso, você acreditaria? Encarnada e reencarnada seis vezes, sem pudor de se divorciar (e, depois, se casar de novo) com todas as suas linhas e entrelinhas, a saga criada por Anderson é como um jogo de telefone sem fio: toda a graça é perceber que a mensagem que chega lá no fim da linha não tem nada a ver com aquela que foi sussurrada no seu ouvido no começo.

Para o bem e para o mal, Hollywood decidiu que não gosta mais dessa brincadeira.

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