Todas as Flores está de volta... e falta de atenção aos detalhes preocupa

Créditos da imagem: Arte/Omelete

Séries e TV

Todas as Flores está de volta... e falta de atenção aos detalhes preocupa

Apesar da história envolvente e cheia de reviravoltas, a pressa para entregar ganchos deixa o cuidado com a lógica em segundo plano.

Omelete
6 min de leitura
08.04.2023, às 11H48.
Atualizada em 08.04.2023, ÀS 12H01

O conceito de verossimilhança é flexível quando se trata de dramaturgia. De fato, ele se ajusta de acordo com a mitologia de cada universo. Se estamos num universo fantástico como o de Harry Potter, essa ideia do que é verossímil se ajusta de acordo com o que foi estabelecido pelo enredo. Por alguma razão, os personagens em volta do Superman não o reconhecem quando ele está apenas usando os óculos do Clark Kent; mas assim é aquele mundo e vamos esticar nosso senso de realismo até onde aquele mundo permite. Não é porque a história tem um homem com a cueca por cima da calça voando por aí, que vamos acreditar em tudo que ela quer. 

Nas novelas, vários autores já caíram na armadilha do “como o personagem fez isso não é importante” e apresentaram enredos que não conseguiam mais ser “comprados” pelo espectador. Como não lembrar do icônico problema com o pen-drive em Avenida Brasil (em que personagens brigavam por fotos impressas que poderiam ter facilmente uma versão digital)? E como esquecer a sucessão de absurdos de Salve Jorge, que iam desde uma Turquia onde todos falavam português até assassinatos em elevadores de hotel onde ninguém entrava?

As equipes de criação de uma novela tendem a achar que essas coisas não importam. De certa forma, quando uma novela cai na boca do povo porque cometeu erros, ela ainda assim está fazendo sucesso. Mas, é seguro dizer que nenhuma novela começa com os envolvidos ansiosos pela ridicularização. Quando ela é muito boa, os panos passam sem maiores problemas; desde que falhas sejam circunstanciais e não parte da rotina criativa, que, quando é preguiçosa, corre com resultados sem pensar em contextos. 

O primeiro capítulo do retorno de Todas As Flores tem um exemplo cabal disso. Numa sequência bisonha, Rafael (Humberto Carrão) está no seu escritório da Rhodes; uma empresa imensa, com uma loja de alto nível, onde funcionários vão e vêm o tempo todo, registrados minuciosamente por seguranças e câmeras. Bom, isso em empresas da vida real, porque em Todas as Flores alguém consegue passar pela segurança e pelas recepções, consegue desligar a energia da sala, entrar na sala da presidência, deixar uma ameaça pendurada na parede, religar a energia, sair e não sofrer nenhuma importunação. O mais incrível é que Rafael vê o invasor sair correndo, mas ainda assim não manda a segurança interceptá-lo. 

Em outro momento, Rafael instala uma câmera na sala de Vanessa (Letícia Colin) e consegue registrar o momento em que ela digita uma senha. Mesmo vivendo num mundo onde para acessar uma conta de banco quase todo mundo usa biometria ou passa por pelo menos três processos de segurança até abrir os dados, Rafael digita a senha registrada pela câmera e consegue acesso ao extrato bancário da moça. Uma desatenção lamentável, que subestima o público e revela uma certa prepotência narrativa. Mesmo que numa resposta inconsciente, erros como esses progridem no coração do espectador, que vai desacreditando do resultado final. 

Em Segundo Sol (outra trama de João Emanuel Carneiro), por exemplo, a partir do momento em que o marido de Giovanna Antonelli na trama morre numa cena ridícula como essa (veja abaixo), parte dos espectadores aciona o modo desconfiança e passa o resto do tempo procurando outros furos para demarcar. No caso dessa sequência o problema é claramente um problema de direção, mas grande parte dos problemas dessa primeira leva de capítulos da Parte 2 de Todas As Flores está na urgência em chegar a resultados sem dar atenção aos processos. Rafael precisava ser ameaçado, então, o roteiro cria a cena da ameaça sem se preocupar em contextualizar a maneira certa de fazê-lo.  

Algumas decisões ligadas às motivações dos personagens também soam estranhas. Diego (Nicolas Prattes) foi um personagem que recebeu muita atenção nessa nova leva de capítulos, mas seus núcleos não estão exatamente bem organizados. As cenas com o irmão menor são superficiais, o triângulo com mãe e filha é somente sexualizado e o rapaz parece disposto a contar seus segredos a todo mundo que pedir com jeitinho. Nicolas está muito bem no papel, mas sequências como aquela em que ele confronta o rapaz que o colocou na cadeia são um exagero dramático que clichetiza o momento. Você não precisa babar e deixar o nariz escorrer para imprimir intensidade. 

Letícia Colin se diverte com Vanessa como se estivesse num playground, mas tampouco há sentido em sequências como aquela em que ela consegue colocar Zoé (Regina Casé) na cadeia. De novo, a pressa do resultado esmaga a coerência no caminho. A novela segue numa velocidade de 200 quilômetros por hora; e como todo veículo que corre demais, não permite que os passageiros apreciem calmamente a paisagem. É interessante ver Maíra (Sophie Charlotte) enganando Zoé, mas é problemático uma mulher como Zoé acreditar no teatro da filha bondosa que entende ter o próprio filho tirado de si. 

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Acontece com Todas As Flores um fenômeno interessante. Apesar de todos esses detalhes questionáveis, a novela se sustenta na força de seu elenco e na exploração do mau-caratismo de seus personagens. O público se inebria com as armações e intrigas dos vilões, com a força vingativa dos mocinhos, com o humor involuntário de personalidades nada maniqueístas. Mas, tudo isso fica sob risco quando não existe interesse em desenvolvimentos minimamente atentos. O enredo do rapaz celibatário que é seduzido pela filha de Mauritânia (Thalita Carauta) – e ainda por cima é parte do enfadonho núcleo de Douglas Silva – é o mais puro exemplo do quanto é inadmissível escolher abordar polêmicas para mantê-las no raso. 

 De tudo que temos visto na linguagem teledramatúrgica nos últimos anos, Todas As Flores é a obra com mais potencial para redimir a linguagem de “horário nobre” (ainda que não esteja nele). Estamos todos aqui, dispostos a viver essa novela intensamente e a acreditar nela. Mas essa não é uma relação unilateral... Pra gente acreditar é preciso nos convencer. E somos fãs de novelas, entendemos como elas funcionam, somos inteligentes e atentos. Não nos subestimem. A nossa “vingança” será o riso... de escárnio.

Está definido...

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... que a ideia de fazer uma “edição especial” para exibir para a imprensa o primeiro capítulo do retorno da novela foi a pior possível. Pegaram partes de capítulos diferentes e esmagaram numa edição bisonha, amadora, com cortes sem sentido e que provocaram uma vertiginosa quebra de boas expectativas. Se essa crítica traz parte das impressões provocadas por aquela exibição, a culpa é totalmente dos responsáveis por aquela decisão esdrúxula. Por sorte só quem viu fomos nós, presentes na festa. Aliás, uma festa linda, como só a Globo sabe fazer. Mas, editar tão horrivelmente o que mostrariam pra gente deixou um desnecessário agridoce no paladar da exibição. 

Está a definir...

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... como será daqui para frente, depois de saber que o trailer da novela (e sobretudo o que vimos exclusivamente na festa) leva os personagens para lugares tão extremos em comparação com onde eles estão agora. De nada vai adiantar vê-los em transformações tão bruscas, se o caminho até lá não tiver coerência. Vamos torcer pelo melhor. 

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