Não sou um grande fã de musicais. Na maioria das vezes, a história me perde quando os personagens cantam para exemplificar um momento de sua vida. Por isso, o trabalho de Baz Luhrmann nunca me encheu os olhos. Porém, é preciso confessar que The Get Down é uma grata surpresa, dentro desse universo.
Primeiro, pense em todo o planejamento de um diretor que tem delegado, praticamente, toda sua vida a trabalhos que contem histórias cantadas, mas que dessa vez resolveu trazer às telas eventos que mostram o surgimento de uma expressão artística-musical sem apelar para esse artíficio. Durante a apresentação dessa mudança - a queda da disco music e o surgimento de um movimento que fala direto com seu ouvinte, o hip hop, Luhrmann deixa em primeiro plano como esse gênero transformou a forma de expressão de uma geração norte-americana, por meio do corpo, das palavras e das mentes.
Com esse foco, o diretor e produtor australiano apresenta a transição de um movimento que se findava dentro das discotecas para algo que usa a alma da rua para comunicar sentimentos, um movimento nascido no seio da comunidade negra, economicamente segredada de Nova York, sob o recorte do sul do Bronx no final da década de setenta. Para fazer isso, uniu um time criativo de ponta composto por Catherine Martin, produtora quatro vezes ganhadora do Oscar, grandes nomes da música e da cultura de rua - todos em posições chave - como Nas, Grandmaster Flash, Kurtis Blow, DJ Kool Herc, Afrika Bambaataa, mais historiadores do hip hop, especialistas em grafiti e dança de rua. Foram dez anos até que o projeto saísse do papel, novamente, pelo olhar sempre promissor da Netflix.
E graças a essa junção, The Get Down é uma série que dá, não só um panorama da Nova York e sua revolução das ruas, da pobreza e da criatividade que lugares de risco catalisam para seus moradores, mas também, um recorte histórico da cidade, quando apresenta a mudança urbana em conjunto com a mais alta taxa de pobreza anotada na região sul do Bronx. Essa soma de situações, levou ao abandono de grande parte dos prédios residenciais da região e ao incêndio desses locais para que os proprietários recebecem o dinheiro do seguro, fator bem explorado no decorrer dos primeiros episódios, principalmente como um dos pontos de virada para a dinâmica da história.
Mas falemos de música, estética e atuação. Perceber o cuidado com o uso das cores, das marcas e com os movimentos retratados é algo ainda mais interessante. The Get Down apresenta um início bonito que evidencia a preocupação com a arte e com os detalhes para que os espectadores tenham um produto histórico estimulante, tudo graças a ligação com o visual de filmes musicais nos quais a arte tem um papel fundamental. Isso fica em destaque, principalmente, por meio de uma brincadeira com cores em tons pastel, mais a incidência de um vermelho vivo, presente no figurino de um dos personagens principais e em alguns momentos de mudança. A junção dessa brincadeira, mais a inserção do amarelo é algo que enche os olhos. Ponto para a Puma, que deve estar muito satisfeita com a forma como a marca é inserida para contar uma história.
A curadoria musical é marcante, com passagens entre faixas e estilos acontecendo de maneira suave e, às vezes, quase imperceptível. Uma mesma cena vai do disco ao funk e não se nota isso acontecendo, é possível perceber somente a mudança de atmosfera que acompanha o ritmo de cortes e da movimentação da câmera, que colaboram para a criação de cada novo espaço.
Entre os grandes momentos dos primeiros episódios, está a leitura do poema feito por Ezekiel, personagem vivido por Justice Smith, para sua professora. Momento conduzido na medida para causar impacto emocional e deixar claro que é esse personagem que “vive nas nuvens” e o artista nato que sofrerá por isso. Assim, todos os momentos em que o jovem se debruça para fazer suas rimas, valem a pena graças a roteiros bem estruturados e rimas desenhadas para ir além do básico.
Odisseia de amor, arte e música
No final das contas, o que a série destaca, além dessa transição de estilos musicais, é a mudança na forma de se expressar e como a população com menos dinheiro descobre novas maneiras de criar e mostrar sua arte. É uma uma odisseia de amor, arte e música que alguns dos personagens terão que passar para chegar até seu sonho. Mylene, o interesse amoroso de Ezekiel, também está ligada à música. Vver como o amor do personagem o corrói é algo interessante e que dá mais carga dramática para o período da série. Ainda, a formação dos laços de confiança, as quebras de amizade e a música, sempre como fator de união entre desconhecidos, faz o passar da história ser sempre marcante, afinal de contas, encontrar o seu destino é o significado de estar vivo. Assim, Luhrmann dá o seu toque na produção, mas não chega a fazer com que os personagens falem por meio de música, mantendo a forma de expressão de cada personagem na realidade. Detalhe que traz o espectador para o chão, mantendo-o atento enquanto acompanha a busca desses personagens pela forma mais completa de criar e expressar seus sentimentos.
Ainda, o fato de não transformar tudo em música e coreografia, deixa em destaque na tela a urgência das mensagens de cada um dos personagens: a vida e a morte ali, ao lado de casa, em cada decisão. Já que a música era algo que estava na rotina daquelas pessoas, no coração de um moleque apaixonado, na vontade da jovem de cantar e não precisar ficar sob as normas da igreja de seu pai, ou ainda na necessidade de encontrar pessoas com as mesmas vontades, dispostas a participar dessa criação musical conjunta e tão diferente.
No final das contas, a história que chega à tela é bem aproveitada, mesmo com alguns momentos que às vezes não chegam a ser profundos, por se perder em resoluções simples dentro de um contexto mais amplo e complexo. Mesmo assim, a série não perde o fôlego e faz com que a identficação com aqueles garotos que não sabem o que vai ser do seu futuro, ou, especialmente, com Ezekiel, que não tem a menor ideia de como aproveitar seu dom com as palavras, seja quase instântanea e permanente.
E claro, ver na tela um elenco, em sua maioria, negro e latino enche os olhos. Principalmente por mostrar uma história rica e que veio a definir diversos segmentos musicais, inclusive o pop, tanto na sonoridade quanto na forma, já na metade da década de 80. De certa forma, essa história faz um paralelo com o que acontece nas periferias do Brasil, que criam seus próprios movimentos, seus próprios sons, e entregam ao mainstream para que eles passem a influenciar outros segmentos. Só que aqui, a periferia de cada região tem a sua sonoridade e até mesmo o seu próprio arranjo musical, não somente a variação do hip hop/rap da costa leste e da costa oeste, como acontece nos Estados Unidos.
Por fim, acompanhar essa epopeia musical com cada um dos seus comunicadores sendo capaz de mostrar seus sentimentos, com interpretações verdadeiras e críveis é sempre instigante para nos fazer conhecer um pouco mais da história da cultura negra, do hip hop e, porque não, do pop norte-americano.
*Os seis primeiros episódios de The Get Down estão disponíveis na Netflix. A segunda parte da primeira temporada deve ser disponibilizada no início de 2017.
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