Opinião: Stranger Things é espelho da Netflix e mostra como ela mudou
Da estreia tímida em 2016 ao final em três partes nos cinemas, a série acompanha a transformação da plataforma em uma gigante global do entretenimento
Stranger Things virou, sem querer, a linha do tempo da própria Netflix. Quando começa, em 2016 com oito episódios lançados ao mesmo tempo e sem grande barulho de campanha, ela simboliza o início da ascensão da empresa que está dedicada a promover não só o conteúdo, mas a nova forma de consumir entretenimento. No enceramento, em 31 de dezembro de 2025 com uma temporada em três volumes e episódio final nos cinemas, nota-se que os padrões se tornaram menos disruptivos e mais alinhados com o consumo tradicional, algo que também reflete os caminhos da companhia nos negócios, ao buscar transmissões esportivas, reality shows e episódios semanais.
É possível dizer que na década passada, Stranger Things foi uma das sementes da fase “startup” da Netflix. A primeira temporada chegou inteira no mesmo dia, reforçando o modelo de maratona que a plataforma havia popularizado com House of Cards e outras séries. Segundo análises da época, a série estreou com pouca atenção e cresceu na base de boca a boca até virar fenômeno global. O Omelete, inclusive, foi o primeiro a dar uma foto da série no Brasil e ela era chamada de "a nova série de Winona Ryder".
Esse é momento em que a Netflix ainda se apresenta sobretudo como empresa de tecnologia, e Stranger Things vira o case perfeito desse modelo: um original de custo moderado, com elenco jovem e aposta em nostalgia, que explode e passa a segurar assinantes sozinha. Conforme a plataforma cresce e a concorrência chega, a série também muda de escala. Stranger Things 2 e 3 ainda seguem o formato de estreia completa, mas a partir da quarta temporada o modelo começa a mudar, e a Netflix também.
E 2022, a empresa divide o ano em dois volumes e transforma o final em um episódio de mais de duas horas, praticamente um longa lançado direto no streaming. O discurso oficial justifica "demanda de pós‑produção", mas o efeito é claro: o assunto dura mais tempo, ocupa dois ciclos de marketing e cria expectativa entre os lançamentos, e faz exatamente o que a Netflix precisava para competir com a lógica semanal dos rivais, sem necessariamente se entregar ao modelo padrão.
A temporada final leva isso ao limite. Stranger Things 5 estreia em três partes — novembro, Natal e Ano‑Novo — sempre em horários globais, e ainda ganha exibição nos cinemas em seu capítulo final. Analistas apontam que esse modelo em blocos, já testado antes, é uma estratégia consciente para prolongar engajamento, reduzir a perda de assinaturas e dominar o assunto nos feriados, em vez de concentrar tudo em um fim de semana de maratona. Stranger Things deixa de ser apenas um momento ou uma história e vira a vitrine oficial do modelo híbrido que a Netflix passou a adotar.
Ao olhar só o modelo de negócio, a mesma década marca também uma reinvenção. Em 2016, a Netflix ainda disputava espaço com a TV a cabo; hoje disputa muito mais do que com os estúdios de cinema ou TV, ela foca nas big techs como Google, TikTok e Amazon. A forma que achou de se manter relevante até para os próprios acionistas foi mudar o modelo que mais a traz dinheiro: as assinaturas. Em 2022, ela criou o plano com anúncios e restringiu o compartilhamento de senhas, medidas que impulsionaram novos cadastros e aumentaram receita. Dessa forma, Stranger Things, nesse cenário, deixa de ser apenas um hit e vira também uma espécie de âncora pro cliente e para o negócio inteiro. É um produto pensado para segurar assinatura por dois meses, ocupar feriados, vender ingressos de cinema e produtos de merchandising, vide a quantidade de licenciamentos encontrados nos mercados.
Talvez, olhar para Stranger Things do início ao fim é ver a Netflix sair da adolescência. Em 2016, ela simboliza a ruptura com o tradicional: tudo de uma vez, buzz orgânico, sensação de novidade. Em 2025, encerra o ciclo como híbrido de TV clássica, franquia de cinema e megaevento digital, desenhado para dialogar com acionista, anunciante e fã ao mesmo tempo. A história de Hawkins é também a história de uma plataforma que precisou aprender a equilibrar a lógica de app de tecnologia com a cultura de fã. Poucas coisas resumem tão bem essa maturidade quanto um final dividido em três atos, lançado em feriados, com exibição nos cinemas e, claro, maratona no sofá.
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