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Pico da Neblina sugere jogo de reflexos entre a realidade e a ficção da maconha

Começo do segundo ano é marcado crença em utopia

Omelete
4 min de leitura
02.07.2022, às 14H39.
Atualizada em 02.07.2022, ÀS 14H56

Durante a coletiva de imprensa para divulgação da segunda temporada, se tornou uma brincadeira constante entre elenco e diretores o fato de que Pico da Neblina deixou de ser uma série sobre um cenário “inviável” para tratar de uma utopia na sociedade brasileira. A piada de fato é inevitável: imaginar um país onde o comércio da maconha foi legalizado onde a extrema-direita acentuou posições conservadoras é de um absurdo similar ao da conquista da Lua pelos soviéticos em For All Mankind, e não ajuda que a série tenha sido lançada e chegado a um segundo ano durante os quatro anos de Jair Bolsonaro no poder.

Tudo isso não tira o valor da produção criada e comandada por Quico Meirelles, que nesse retorno parece um pouco mais consciente dos tipos de temas que habitam sua história. Os três primeiros episódios da segunda temporada (aos quais o Omelete teve acesso antecipado ao lançamento) destoam de forma significativa do primeiro ano, afinal, e muitos de seus méritos surgem do exercício de “e se?” que agora ganha melhor firmeza não só pelo status de convulsão do país, mas também da distância que começa a se dar da própria realidade.

Nesse sentido a comparação com For All Mankind é fortuita, ainda que a última tenha sido bem mais eficiente na constatação e internalização do processo. Se na produção da Apple torna-se uma diversão a parte imaginar as ramificações da derrota norte-americana na corrida espacial, em Pico da Neblina a grande atração é inevitavelmente perceber como as estruturas de poder se moldam em torno de uma decisão aparentemente simples sobre a droga, tanto do lado imediato do crime quanto dos negócios. Na prática, é uma série sobre economia contada pela perspectiva humana, uma grande simulação que aproveita a fantasia para discutir as consequências desses pequenos movimentos políticos na população - seja pelo lado social, empresarial e até comportamental.

A questão é que ainda há o desafio de como canalizar tudo isso pela história, e é aí que a série anda a passos hesitantes. A primeira temporada sofreu muito com a tendência um tanto trôpega de repetir ecos e estruturas de suas referências, se aproximando demais da brincadeira de ser um “Breaking Bad da maconha” pelos efeitos da legalização no tráfico. A centralidade da amizade de Biriba (Luís Navarro) e Salim (Henrique Santana) na história parecia feita a fórceps nesse sentido, usando o último de anteparo para todas as repercussões dos atos do primeiro para “sair” do crime junto com a maconha.

Já o segundo ano, pelo menos em seus primeiros episódios, demonstra um interesse pelo afastamento dessa fórmula. O foco é de novo em torno do tráfico e da dissidência que se forma contra o comando de CD (Dexter) na região, mas com Salim fora da jogada a série com naturalidade desloca as atenções para o desentendimento de Biriba com o chefe. As questões de sobrevivência do comércio paralelo ficam palpáveis aos olhos do público com CD no comando da nova loja do protagonista, enquanto a relação do dito vilão com a irmã de Biriba, Kelly (Leilah Moreno), permitem a criação de um triângulo de relações bem mais promissor aos efeitos pretendidos.

Mas quais seriam esses efeitos? É aí que o “e se?” entra em cena. Meirelles foi categórico em entrevista ao Omelete sobre como Pico da Neblina se move para longe da questão imediata da legalização nesse segundo ano, e de fato se sugere distanciamento nesse início: com um salto temporal de meses, o momento é outro para o mercado da maconha, formando-se comércios especializados que miram o máximo da experiência e uma frente de massa similar ao cigarro, liderada pela True Green que foi fundada na temporada anterior.

No meio de tudo isso, o empresariado começa a formar um espaço elitizado, com poucos negócios se comunicando para entender como comandar o mercado na legalidade, enquanto o tráfico tenta entender como se manter no poder sem a verdinha. Nesse viés, não é à toa que CD deixa de ser a ameaça superior distante para ganhar contornos humanizados na história, pois ele é quem melhor reflete esse puxa e repuxa social que começa a se formar em torno da droga. Com a ótima atuação de Dexter, é óbvio que o personagem ocupa os melhores momentos do seriado neste primeiro momento da temporada.

Fora disso, porém, resta a questão de como Pico da Neblina vai nortear seus outros núcleos em meio a essa indefinição entre confiar no próprio taco e seguir refletindo suas inspirações. As reviravoltas e surpresas deste início sugerem que a temporada segue interessada na torção do que é vilão e mocinho na trama (sobretudo no fim repentino do terceiro episódio). Por outro lado, o pareamento súbito de CD com Vini e o espaço maior a personagens como Carmen (Renata Carvalho) e a própria Kelly dá o tom de episódios mais comprometidos nesse reflexo de engrenagens sociais pela ótica da fantasia. Como a roda do tempo cronológico segue girando, é de se imaginar que a resposta venha logo.

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