Travessia: O que Glória Perez e Aguinaldo Silva podem ter em comum?
Glória Perez lança mão da ressuscitação de personagens e traz de volta a delegada de Salve Jorge
Em 2018 Aguinaldo Silva movimentava o mundo da internet com uma notícia arrasadora: traria de volta Nazaré Tedesco, a amada vilã de Senhora do Destino, vivida por Renata Sorrah com um sucesso quase sobrenatural. A ideia, contudo, não viu a luz do sol por muito tempo. Pedidos da própria atriz fizeram com que o autor desistisse da ideia. “Deixa a Nazaré no canto dela”, teria dito Renata. A decisão se mostrou a mais sábia em torno daquela produção: O Sétimo Guardião foi um dos maiores fracassos da história do horário nobre.
O recurso já era velho conhecido de Aguinaldo. Como suas novelas eram apoiadas em realismo fantástico, era sempre fácil ser complacente com as regras da verossimilhança, tornando possível que personagens de uma das cidades que montavam o “Complexo Aguinaldoano”, vazassem uns para as fronteiras dos outros. Estranhamente, em quase todos os casos em que o escritor lançou mão da estratégia, havia políticos envolvidos.
O deputado Pitágoras (Ary Fontoura) de A Indomada (1997) acabou aparecendo em Porto dos Milagres (2001). Já o senador Victório Vianna (Lima Duarte), que era de Porto dos Milagres, deu as caras em Senhora do Destino (2004). Aguinaldo voltou até o mundo de Greenvile, pegou o prefeito Ipiranga (Paulo Betti) e sua esposa Scarlett (Luíza Tomé); e lançou-os aos leões em O Sétimo Guardião (2019). A Indomada, contudo, não exportou personagens apenas e enquanto era exibida, recebeu a visita de Murilo Pontes (Lima Duarte), de Pedra Sobre Pedra (1992).
É bastante provável que fazer isso tantas vezes com personagens que eram políticos tenha sido instintivo. Mas, ao mesmo tempo, isso sinaliza dois fatores importantes quando o assunto é reaproveitamento criativo: o “samba” no roteiro não é tão grande quando a função desses personagens pode ser reprisada na ótica profissional mesmo. Políticos podem ter laços externos em qualquer instância... autoridades, idem. Você também pode usar personagens à margem total da trama central (como fizeram com o Jamanta de Torre de Babel, que reapareceu em Belíssima). Mas, é menos comum e mais trabalhoso.
Glória Perez, contudo, não é uma autora dada ao realismo fantástico; ao menos não enquanto gênero. A Força do Querer foi um reencontro dela com uma escrita sóbria, perdida no degradê de quase distopias envolvendo o Oriente. O Clone, primeira dessa safra, foi sucesso absoluto... Salve Jorge, a última dessa lista, foi um fracasso sem precedentes na carreira da novelista. Entretanto, embora tenha “voado” na própria liberdade criativa, Glória não é uma autora de realismo fantástico e esse recurso de ressuscitar personagens surge como uma nova faceta em seu currículo.
Curiosamente, a delegada Helô (Giovanna Antonelli) veio da própria Salve Jorge, uma novela corajosa em certos aspectos e confusa em muitos outros. Assim como Aguinaldo viu o cansaço de seus métodos se apresentar com força em Porto dos Milagres, Glória precisou lidar com a evidência de que Salve Jorge era a peça moribunda de uma exausta fórmula Oriente X Ocidente. Esperta, ela deu a volta na roupagem de sua dramaturgia e re-polarizou o choque cultural que havia virado a base de sua escrita. Agora, tudo é uma questão de Brasil. Aguinaldo até tentou voltar lá na história dos guardiões, mas o que é finito é finito. Agora é Glória quem arrisca um pouco... mas só um pouquinho.
Travessia
A delegada Helô não volta sozinha. Alexandre Nero e Luci Pereira também retornam. Ele como advogado e ela como empregada. À época, o núcleo de Helô também chamava atenção por conta da presença de Thammy Gretchen, que havia conseguido o que poucos com seu currículo já tinham alcançado: uma chance numa emissora pouco amigável com quem passou por nichos como o nicho pornográfico. Thammy se revelou carismático e funcionou muito bem ao lado de Giovanna, uma atriz especialista em ser adorável. Quando estava escrevendo A Força do Querer, Glória quis Thammy no elenco e o moço preferiu a carreira política. Agora, ironicamente, ele provavelmente se encaixaria nessa re-escalação e sua ausência acaba soando como um desfalque no núcleo.
Helô estará de volta para investigar crimes relacionados ao plot central da história de Travessia. Na trama, Brisa (Lucy Alves) é uma maranhense que se torna vítima de uma deepfake, uma versão sofisticada de Fake News, que termina por atrapalhar completamente toda sua vida, obrigando-a a fazer uma “travessia” em busca da verdade e da própria inocência. A tecnologia, a mentira e o mundo dos influencers se encontram num enredo típico de Glória: crítico e lúdico. É um mexido promissor, que vai finalmente nos sinalizar com a possibilidade de que A Força do Querer tenha sido o começo de uma nova era para a autora. Eu estou muito ansioso e muito otimista.
Travessia tem direção artística de Mauro Mendonça Filho, direção de Walter Carvalho, Andre Barros, Mariana Richard e Caio Campos. A produção é de Claudio Dager e Tatiana Poggi; e a direção de gênero é de José Luiz Villamarim.
Está definido que...
... a coragem de Glória Perez para escolher suas protagonistas sempre foi uma de suas grandes qualidades; e isso sempre funciona. Ela levou isso ao apogeu do risco em Salve Jorge, escolhendo Nanda Costa para fazer a Morena. Em A Força do Querer, o rosto de Ísis Valverde era típico, mas embora não anunciada, Carol Duarte era a outra ponta desse protagonismo, fazendo um homem trans. Mesmo com Giovanna em O Clone, Deborah Secco em América, Cláudia e Cássia em Barriga de Aluguel, entre outras... as mocinhas de Glória nunca eram chapadas, monocórdias. Elas iam da ternura ao egoísmo, da força ao oportunismo, tudo no mesmo capítulo. Dessa vez Lucy Alves chega para fortalecer a naturalização das escolhas coerentes quando o assunto é regionalismo, etnia, culturas... Uma atriz linda, forte, poderosa. Que nunca mais sejamos estapeados com whitewashings inconsequentes, como quando colocaram uma mulher branca fazendo uma personagem asiática e tiveram a ousadia de intitular o absurdo como Sol Nascente. E olha que coincidência... Giovanna Antonelli também estava envolvida nisso. Tudo é cíclico mesmo.
Está a definir...
... como será a presença de Jade Picon no elenco. Ela vai se envolver com um dos outros protagonistas (Chay Suede) e isso significa que sua entrada no mundo das telenovelas não será inicialmente discreta como foi a de Grazi Massafera. Contudo, a escolha de Grazi para ser sua mãe foi extremamente sensível. Grazi sabe como ninguém o que estar nessa posição. As duas não contracenam na trama (a mãe de Chiara morre ao dar à luz), mas a escolha sinaliza um cuidado de tornar o ambiente seguro para Jade. Será interessante ver como Picon vai se sair... calando ou não a boca do tribunal do twitter. Eu torço para que ela seja sensacional. Vamos ver...
Sobre a coluna Ovo Mexido
Todo mês, a coluna fala sobre tudo que diz respeito à televisão – da aberta ao streaming – com novelas, séries e realities; um espaço para “prazeres culpados" sem culpa nenhuma.