Ecos de Prochaska: Por que o amor entre mulheres é tão difícil na TV brasileira?

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Ecos de Prochaska: Por que o amor entre mulheres é tão difícil na TV brasileira?

Ainda que casais gays masculinos também enfrentem problemas de representatividade, nada se compara ao que sofrem as mulheres que amam outras mulheres na TV

Omelete
7 min de leitura
29.06.2022, às 15H49.
Atualizada em 22.08.2022, ÀS 18H59

Em 9 de Agosto de 1988, a novela Vale Tudo marcava seu capítulo número 75 e nele, Cecília (Lala Deheinzelin) – a discreta e amorosa esposa de Laís (Christina Prochaska) - morria num acidente de carro e levantava uma questão importante: já que não havia um casamento legal, com quem ficariam os bens de um cônjuge homossexual que viesse a falecer? Apesar de ser um tópico relevante que tinha pouco espaço na robusta narrativa de interesses da novela, Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Basseres conseguiram fazer com que pela primeira vez - e numa época que ainda sofria censura - o amor entre duas mulheres fosse retratado.

Não é incomum encontrar quem defenda a teoria de que Cecília foi morta por conta dos cortes obrigatórios ou da rejeição do público. Os autores da novela sempre afirmaram que a morte da personagem estava prevista, e apesar das sinopses provarem suas palavras, esse parece ter sido um eco que foi perseguindo a teledramaturgia conforme as décadas foram passando e a suposta liberdade de representação foi evoluindo em passos pequenos. Os casais formados por mulheres eram sempre um problema, seja direto (resultando em morte de uma delas) ou indireto (perdendo espaço na trama).

Exatos 10 anos depois de Laís e Cecília, Sílvio de Abreu tinha planos ousados para sua megalomaníaca Torre de Babel (1998). Christiane Torloni e Silvia Pfeifer assumiriam o casal Leila e Rafaela, que teriam papel de destaque, com história planejada, cenário próprio, correlações com a trama e um amor assumido e comentado. Logo nos primeiros capítulos, coisas como a rotina de um casal de mulheres se preparando para dormir, numa cena corriqueira, pareciam encontrar dificuldade de serem recebidas como algo terno; causando um incômodo totalmente desproporcional tanto do público quanto da mídia.

Pouco importava que Sílvio tivesse sido competente em estabelecer o conflito da personagem de Torloni com a família (uma família de malfeitores que vivia na miséria), que a tinha renegado após saberem de sua homossexualidade. Rica e feliz, a personagem tinha embates incríveis com o bem construído – e também rejeitado – vilão de Tony Ramos. O plano era trágico: uma delas morreria na explosão do shopping; a outra se apaixonaria pela personagem de ninguém menos que Glória Menezes. Estabelecida a absoluta rejeição ao casal, Sílvio precisou ceder e fazer com que as duas fossem vítimas do desastre.

Avançamos, então, mais 17 anos no tempo e Gilberto Braga decidiu tentar de novo. Babilônia, em 2015, teve o que talvez tenha sido um dos primeiros capítulos mais controversos da história da TV brasileira. Sombrio, sem humor, sem leveza e carregado de drama, o capítulo tentou um pouco de ternura ao mostrar as personagens de Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg dando um selinho. O público já sabia que elas fariam um casal e que a ideia era mostrar a homoafetividade na terceira idade. Contudo, o impacto foi muito maior do que provavelmente todos estavam esperando. As demonstrações de afeto entre as duas foram diminuídas e esse foi só o prenúncio de uma série de interferências que Babilônia começou a atravessar mesmo antes da metade de sua duração. Interferências essas, aliás, que serão finalmente levadas a público na biografia de Gilberto que Maurício Stycer está escrevendo.

Tal qual acontecia com os casais de homens, a recepção nunca foi fácil. Contudo, sempre pareceu que no caso dos casais femininos, havia um certo ruído na forma como eles eram construídos. Mesmo em posições coadjuvantes isso podia ser claramente notado. O casal de Mylla Christie e Bárbara Borges – em Senhora do Destino - não era exatamente “simpático”. O mesmo no que diz respeito a Alinne Moraes e Paula Picareli, em Mulheres Apaixonadas. A Rafaela de Paula Picareli, inclusive, era assustadoramente possessiva, o que sempre levava o público a torcer por uma separação (geralmente ligada a uma aproximação masculina).

João Emanoel Carneiro, por exemplo, é o REI da “cura gay”. Absolutamente TODAS as suas novelas tiveram personagens gays que terminaram em relações heteronormativas; o que é assustador, considerando que recentemente o galã Carmo Dalla Vecchia encantou a internet assumindo o casamento com o autor em rede nacional. E mesmo tendo cometido o equívoco na maioria das vezes com personagens gays masculinos, em Segundo Sol (2018) João fez questão de completar o desserviço fazendo com que Nanda Costa (também assumidamente lésbica) abrisse mão da relação com sua namorada para ficar com o personagem de Armando Babaioff (outro ator que recentemente também abriu publicamente sua orientação). O fato disso ter sido feito e defendido por dois atores queers é inacreditável.

O rosário de justificativas corre por entre possibilidades que vão desde a suspeita de que a audiência de novelas - majoritariamente feminina - rejeita mais casais de lésbicas; até a dificuldade de ver atores atrelados a outro tipo de estereótipo, assumindo essas personas que vão muito para fora do eixo em que se apoiaram antes. Essas possibilidades, contudo, estão no campo da recepção. Por mais que boa parte desses resultados seja responsabilidade de uma cultura homofóbica, traços dessa mesma homofobia internalizada estão presentes, também, no campo da emissão.

Por que tantas dessas relações precisam ter elementos masculinos envolvidos? Por que em tantas delas uma das personagens é antipática e dominadora? Por que as direções desistem tão rápido de convencer o público da força do casal? Se fuçarmos, podemos descobrir Luciana Vendramini e Gisele Tigre marcando melhor a história em Amor e Revolução, do SBT. Mas, por questões simples de visibilidade, quase não se ouve essa voz. Mesmo uma minissérie como Engraçadinha (1995), tatua sem querer a ideia da “lésbica predadora” no imaginário coletivo, que não filtra a beleza das cenas entre Claudia Raia e Maria Luisa Mendonça (com sua Letícia inesquecível, que só queria que seu amor não fosse confundido com tara), simplesmente porque o alto teor erótico das sequências borra as vistas.

Recentemente, na aberrativa Um Lugar Ao Sol, lá estava novamente um casal de mulheres vividas por Mariana Lima e Natália Lage, sendo construído a partir de uma relação hetero que termina. E não é só uma questão de proximidade com os códigos da vida real... É claro que coisas assim acontecem, mas nas novelas, parece que os casais que não somem ou morrem começam a partir da heteronormatividade ou terminam nela, de algum jeito. E os ecos que ficam são perigosos, como se homoafetividade fosse transitória ou como se as lembranças fossem as de perda e de dor. Afinal de contas – e depois de tudo - você se lembra como a Laís de Vale Tudo terminou? Eu não.

Está definido...

... que nas séries de TV casais de mulheres são bem melhor retratados. Aliás, esse é um momento incrível para a representatividade lésbica no mundo dos seriados, tanto em séries adolescentes (como Heartstopper), séries para o público geek (como Stranger Things) como para os adultos (como Grey’s Anatomy). E embora em alguns casos os códigos se repitam, as séries de TV têm mais liberdade, mais segurança e um público-alvo bem definido; o que proporciona escopo para narrativas mais complexas.

Está a definir... 

... o que pensamos do enredo da chegada de Zaquieu (Silvério Pereira) em Pantanal. Silvério deu algumas declarações sobre estar tranquilo de que a paixão platônica do personagem por Alcides (Juliano Cazarré) não será alívio cômico e que essa é uma situação triste, solitária. Essa será, provavelmente, a prova de fogo da adaptação de Bruno Luperi no que diz respeito à representatividade LGBTQIA+. Em 1990, o “peão gay” vivido por João Alberto Pinheiro (que faleceu em 1992 em decorrência de problemas causados pelo HIV) era somente uma piada. Acredito que Silvério realmente não aceitaria o papel se essa abordagem não fosse mudar. Vamos aguardar.

Sobre a coluna Ovo Mexido 

Há muito tempo que a televisão não é mais a mesma, mas uma coisa sobre ela é irrefutável: ela persiste. O conceito de Omelete é quebrar ovos e transformá-los numa mistura homogênea que sirva ao consumidor com o gosto de familiaridade que ela tem. Um ovo mexido não é tão homogêneo assim, mas dentro de sua irregularidade, pode agradar pela proposta de novas texturas. Aqui na coluna o assunto será a TV em todas as suas épocas, formas e transições. E é isso que vamos servir para quem é apaixonado por entretenimento tanto quanto nós.

Todo mês, a coluna falará sobre tudo que diz respeito à televisão – da aberta ao streaming – com novelas, séries e realities; um espaço para “prazeres culpados" sem culpa nenhuma. 

*Henrique Haddefinir é colaborador do Omelete desde 2013, também é roteirista, dramaturgo, escritor e mestrando em teoria e crítica

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