O Servo do Povo soaria absurda se não fosse assustadoramente real

Créditos da imagem: HBO Max/Divulgação

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O Servo do Povo soaria absurda se não fosse assustadoramente real

Com episódios disponíveis na HBO Max, a produção que levaria Volodymyr Zelensky à presidência da Ucrânia é um fenômeno de ambiguidade

Omelete
4 min de leitura
17.05.2022, às 11H19.

Volodymyr Zelensky foi eleito presidente da Ucrânia em 2019 através da mesma esteira da qual havia vindo, há alguns anos, a eleição de Donald Trump nos EUA: aquela por onde correm as intenções da população em colocar no poder alguém que não teria os mesmos vícios políticos da elite, falando mais "de igual para igual". Foi esse mesmo raciocínio que elegeu tanto Trump quanto Bolsonaro. O que nenhum dos dois tinha, na verdade, era aquela que pode ser considerada a melhor campanha eleitoral de toda história: uma série de TV, protagonizada pelo candidato, onde ele, um homem comum, sentava na cadeira mais importante do país. Zelensky, que antes era só um ator vivendo um personagem, repetiu a mesma história na própria vida.

A série O Servo do Povo estreou na Ucrânia no ano de 2015, bem antes de Zelensky demonstrar qualquer interesse político de forma pública. A história, contudo, era uma espécie de confirmação contemporânea da bagunça eleitoral que tomou conta do globo na década passada, onde para ser presidente bastava ter conexões, dinheiro e estratégia. A quase pré-candidatura de Luciano Huck trouxe essa mesma possibilidade para o nosso lado. Em O Servo do Povo, Zelensky vive Vasily Petrovych, um professor de história que faz um discurso apaixonado anticorrupção e é filmado por um aluno, que joga o vídeo na rede e transforma o professor numa celebridade. Sem que saiba, várias cordas são puxadas para que ele se candidate e quando Vasily percebe, já é o presidente do país.

Dramaturgicamente o caminho é muito simples: aquele homem comum, com ideias de oposição, vai assumir o cargo mais importante da Ucrânia; e como ele não tem ideia de como a engrenagem funciona, vai oscilar entre tomar decisões chocantes que acabam dando certo e outras que nem tanto. O fato é que, enquanto era exibida, a história mostrava Vasily se recusando a andar de limusine, se recusando a dormir na residência presidencial, se recusando a ter seguranças e tomando medidas populares, como baixa de impostos. Em retrospectiva, contudo, é como se tudo tivesse outro significado: O Servo do Povo soa demagógica, oportunista, quase como se todas as semanas, naquele mesmo horário, a propaganda eleitoral fosse roteirizada e atuada dentro das casas de toda a Ucrânia.

O Servo de Si

Os 23 episódios daquela que é considerada a primeira temporada da série (que na verdade teve 3 temporadas e 51 episódios) supostamente nasceram sem a pretensão de ser uma campanha eleitoral disfarçada de dramaturgia. O problema é que, colocando a eleição de Zelensky em perspectiva, tudo passa a soar calculado. Vasily, seu personagem, é um professor sem nenhuma experiência, que elege uma equipe inexperiente, construindo um ambiente de ingenuidade e romantismo político que mesmo que não se correlacionem com a verdade, tem apelo narrativo. Os roteiros usam bem a trajetória clássica do homem comum que se vê diante de uma posição de poder e embora haja equívocos no texto e na condução de alguns enredos, Zelensky é carismático e crível; e segura o protagonismo com competência.

Entretanto, é impossível não passar cada cena da série pensando em tudo que não estava ali quando ela foi produzida e exibida. As decisões de Vasily em torno dos organismos financeiros e legislativos dentro da ficção, foram usadas como plataforma eleitoral fora dela. Sua equipe comete erros, ele é pressionado pelo sistema político, mas não importa o que aconteça, todas as suas ações refletem a personalidade de um líder de caráter ilibado. O mais incrível é que mesmo que o senso crítico saiba – no campo racional – que Vasily e Zelensky não são a mesma pessoa, a população ucraniana quis recontar a mentira na trilha da realidade.

Não é incomum ver Volodymyr Zelensky em pronunciamentos ou aparições públicas usando roupas informais (sempre com aquele verde militar). Tal qual seu personagem em O Servo do Povo, o que o presidente quer é reforçar mais e mais sua proximidade com a sociedade civil ucraniana, aproveitando, também, para estabelecer uma imagem de resistência. A guerra declarada contra a Rússia foi a reviravolta que o “script” não previu. De súbito, Zelensky foi arrancado de sua narrativa hiper controlada e jogado até lugares onde Vasily nem pensaria em estar. A sensação bizarra que a vida jogou sobre o que era só ficção, chega até o apogeu do choque quando, na última cena dessa primeira leva de episódios, Vasily, o presidente “de mentirinha”, recebe uma ligação do presidente da Rússia. A solenidade com a qual a edição do episódio trata esse momento se torna uma provocação involuntária.

O que fica no final de tudo isso é um certo desconforto. Também pesa no espectador passar tanto tempo acompanhando uma Kiev bela e solar, sabendo que agora ela amarga a mais horrível destruição. A comédia de O Servo do Povo se esvazia, embora seja até mesmo histórico pensar nela enquanto peça fundamental do poder midiático sobre a engrenagem do mundo.  

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