O que a nova Hawkeye tem em comum com Mad Men

Créditos da imagem: Disney/Divulgação

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O que a nova Hawkeye tem em comum com Mad Men

Passagem do roteirista Jonathan Igla pela série de Don Draper repercute em Gavião Arqueiro

24.11.2021, às 10H33.
Atualizada em 24.11.2021, ÀS 10H57

A passagem do roteirista Jonathan Igla por Mad Men, que deu início à sua carreira hollywoodiana e agora o gabarita a ser o roteirista-chefe e coprodutor de Hawkeye, certamente lhe deu uma perspectiva privilegiada sobre a realidade dos homens deslocados do mundo moderno. Isso está na minissérie do Gavião Arqueiro também, numa das cenas centrais desses dois primeiros episódios que o Disney+ acaba de disponibilizar.

Nela, Clint Barton, o Gavião Arqueiro, janta com seus filhos numa daquelas mesas redondas de um restaurante de Chinatown, e a dinâmica bem humorada com as crianças sugere - nessa mesa que não tem cabeceira e todos são “iguais” - que a relação de Clint com os filhos, apesar da sua velha rotina de vigilante, é muito saudável. É época de Natal, de qualquer forma; é quando os espíritos se elevam.

Na hora da conta, porém, o dono do restaurante recusa que Clint a pague; o Gavião Arqueiro salvou toda a cidade de Nova York ao lado dos Vingadores, afinal. A evidente gratidão do dono do restaurante não impede o constrangimento de Clint, que no melhor estilo Don Draper é despertado da sua fantasia familiar e transportado de volta para a realidade, onde o Gavião nunca poderá ser um pai normal nem se emancipar de vez das preocupações civis, já que ele não tem superpoderes, não é um deus, nem imortal.

A série não precisa ficar interrompendo a ação com longos flashbacks traumáticos para demonstrar que o Gavião Arqueiro vive num estado de inadequação, um não-lugar entre os mortais e os super-heróis - bastam esses momentos triviais, carregados de significado. É uma operação discreta, do tamanho de um aparelho auditivo; introduzir no MCU a noção, bem conhecida nos quadrinhos, de que Clint está ficando surdo é uma extensão natural da ideia de inadequação, e a explicação se dá em cena de um jeito que parece já um padrão em Hawkeye: rápido, engraçado e pontual.

Jeremy Renner completou 50 anos em 2021 e nunca pareceu tão deslocado nesse universo de fantasia definido pela juventude, uma condição que Igla incorpora de forma consciente na série. Se Clint Barton é Don Draper, um homem que vive uma segunda vida emprestada e agora tem no espírito dickensiano do Natal a oportunidade de tomá-la para si, então a Kate Bishop de Hailee Steinfeld só pode ser a sua Peggy Olson. Como Peggy, a antiga secretária de Don que se emancipou e se tornou bem-sucedida publicitária em Mad Men, Kate também entra em cena em posição subordinada; ela cresceu endeusando os Vingadores e, aos 22 anos, continua tutelada por uma mãe condescendente.

Kate é a protagonista da série então obviamente ela também tem suas cenas-chaves. Uma delas é a abertura do primeiro episódio, um semiflashback ambientado em 2012: Kate é uma criança rica que vive numa cobertura em Manhattan, mas só descobrimos esse privilégio quando as paredes e o teto são arrancados pela invasão de Loki e os chitauri, do primeiro filme dos Vingadores. Mais do que um serviço ao fã, essa cena - e principalmente esse ponto de vista - tenta nos colocar numa escala pedestre que é muito cara para a Marvel, editora famosa por fazer de seus super-heróis tipos humanizados, com falhas e preocupações mundanas. Ver Kate Bishop apequenada diante de um leviatã chitauri talvez lembre o espectador de HQs como Marvels, de 1994, aventura contada da perspectiva dos civis. 

Mas convém não esquecer que Kate Bishop nasceu num berço dourado e em boa medida essa abertura da minissérie é menos o despertar para o horror do que um despertar da criança para a própria grandiosidade de Manhattan - que fica demarcada na panorâmica aérea quando a cobertura é escancarada. Nesse sentido, sua introdução tem paralelos com as primeiras cenas de Peggy em Mad Men, quando ela chega tímida ao edifício da Madison Avenue e o gigantismo do centro do dinheiro e do poder em Nova York a oprime. Na abertura de Hawkeye, o gigantismo talvez seja revelatório de dinâmicas social (de classe, de gênero) do mundo dos adultos.

Para tirar disso que os arranha-céus e mesmo o leviatã alienígena são marcas de um universo masculino a ser enfrentado é apenas um passo. Não por acaso, quando a trama salta ao presente e Kate Bishop reaparece aos 22, ela marca terreno justamente enfrentando a altitude, escalando acrobaticamente um edifício e destruindo uma torre mais alta. Como na cena do jantar da família Barton em Chinatown, a função desses momentos não é metafórica - felizmente, Hawkeye está se mostrando uma minissérie preocupada com a trama primeiro antes de se preocupar com o subtexto - mas é fácil enxergar o simbolismo do gesto. Ascender socialmente e ocupar o andar de cima, por vertiginoso que esse desafio pareça, une Peggy Olson e Kate Bishop na ficção.

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