Netflix prova força da cultura pop latina com Eternauta, Senna e García Márquez
Trinca de lançamentos coloca produções no mesmo nível dos blockbusters americanos
Na última semana a Netflix lançou para todo mundo a superprodução argentina O Eternauta, estrelada por Ricardo Darín e baseada na HQ de Héctor Germán Oesterheld, com desenhos de Francisco Solano López. Em dois dias - e sei que isso parece muito para os fãs das maratonas do streaming - devorei os seis episódios dessa história que mostra a Argentina devastada por uma neve tóxica. A trama da HQ faz uma metáfora da própria história argentina, do peronismo, dos bombardeios que Buenos Aires sofreu em 1955 e a série da Netflix adiciona novos elementos para atualizar a história. É um prato cheio para quem gosta de narrativas pós-apocalípticas como The Last of Us - e acredite, O Eternauta não fica atrás da série da HBO.
Fissurado pela trama de Juan Salvo, personagem de Darín, me peguei pesquisando detalhes sobre a obra. Me impressionou já ter visitado Buenos Aires e locais que são citados na história e até pouco tempo nunca ter sido impactado pela obra ou seu autor. Descobri que não é tão à toa assim. A HQ ganhou o mundo há alguns anos, na década de 2010, quando foi publicada no Brasil e nos EUA, mais de 50 anos depois do lançamento original. Oesterheld foi sequestrado e desaparecido durante a ditadura da Argentina, dado como morto em 1977. Qualquer semelhança com um tal filme brasileiro que venceu o Oscar não é mera coincidência. Os regimes autoritários da América Latina seguiam a mesma linha de atuação. Entretanto, ao contrário da história de Ainda Estou Aqui, a família do autor, a esposa e a filha, também foram mortas pelos militares de lá.
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Fiquei pensando nisso e em O Eternauta durante o final de semana até que, saindo da sessão de Pecadores - que assisti pela segunda vez e continua fantástico -, me peguei lembrando do texto que escrevi falando das referências da música e cultura na produção. Eu, brasileiro, nascido e criado no Rio de Janeiro, discutindo blues, hoodoo e a vida de Buddy Guy, um dos símbolos do gênero musical que é intrínseco à história do meio rural americano, da migração entre estados e de momentos históricos dos EUA. O que mais me impressionou foi ver que muito daquilo eu já conhecia previamente, o que tornou a experiência do filme de Ryan Coogler ainda mais impactante. Se isso aconteceu comigo e com outras pessoas em relação ao blues, que é algo muito específico dos EUA, é fácil entendermos porque tanta gente no Brasil conhece e discute a história norte-americana com muito mais precisão do que o próprio passado da América Latina.
Esse trabalho de massificação da cultura do país é resultado de uma indústria que, há séculos, trabalha insistentemente para expandir ao mundo a visão “americanizada” de fatos, conceitos e filosofias. Das guerras que lutaram - as que venceram e perderam - conhecemos todas de cabo a rabo. Dos motivos que levaram o país ao conflito até as consequências após eles. Conhecemos a história de heróis políticos, do esporte, da música e por aí vai. Qual a importância real, para nós brasileiros e latinos, sabermos quem foi Alexander Hamilton ou Aaron Burr, por exemplo? A resposta certa é: nenhuma. Entretanto, ao transformar essa história em uma obra pop com um musical da Broadway e depois vender os direitos para o streaming da Disney, Lin-Manuel Miranda e Hamilton levaram a história da luta pela independência norte-americana para milhões de casas no mundo todo.
E é aí que entra o fator Netflix e como o streaming entendeu que estamos prontos para consumir cultura pop de outros países. Narcos, que completa 10 anos em 2025, mostrou que esse lado popular da história latina também tem mercado. E sim, estamos falando de uma empresa que fatura milhões todo ano. Nada é por caridade. Faz porque o público consome e quer se ver ou identificar ali na tela. Não é à toa que Round 6, uma produção vinda da Coréia do Sul, La Casa de Papel, produção espanhola, e Lupin, da França, estejam até hoje no Top 10 do streaming. No fim, porém, não deixa de ser arte de diferentes culturas exportada para diversos países, um mérito inerente ao que é a Netflix hoje.
Olhando para a América Latina, O Eternauta fecha uma trinca de superproduções do continente no último ano, que envolvem nomes titânicos para a cultura de cada um de seus países de origem. Oesterheld e Ricardo Darín, como citados anteriormente na produção argentina. Ayrton Senna, maior piloto do Brasil na Fórmula 1 e um dos maiores ídolos do país, na série biográfica estrelada por Gabriel Leone. E Gabriel García Márquez que teve seu clássico da literatura colombiana e mundial, 100 Anos de Solidão, adaptado em formato de série. As três obras desafiam qualquer preconceito quanto ao tamanho do orçamento, qualidade de produção e, principalmente, universalidade na história. O coletivo para superar adversidades, em O Eternauta, o talento na construção da idolatria, de Senna e a saga de uma família e as memórias do passado, em 100 Anos de Solidão. São três produções impecáveis e fundamentais para entendermos que a cultura pop latina também tem seus heróis e força para se tornar global.
Há vários outros exemplos. Inexplicável, o filme de Fabrício Bittar, com Letícia Spiller e Eriberto Leão, que mostra o caminho de fé de um menino para se recuperar de uma doença, se tornou um fenômeno no streaming e ficou em primeiro lugar no Brasil, Portugal, Argentina, Uruguai, Bolívia, Paraguai e Equador. Sintonia teve 5 temporadas e chegou chegando ao topo do Top 10 Global de séries de língua não-inglesa da plataforma. 3% foi a primeira série produzida no Brasil pela Netflix e mostrou que o sucesso internacional era possível, garantindo quatro temporadas com um gênero que nem é o mais forte do país: a ficção-científica.
O sucesso de Ainda Estou Aqui este ano pode encaminhar as produções do país pelo mesmo caminho que Parasita fez para produções sul-coreanas. Oportunidades não faltam e os grandes streamings estão de olho nisso. O Agente Secreto, filme de Kleber Mendonça Filho, chegará ao Festival de Cannes no radar das grandes distribuidoras. Para nós espectadores, fica a chance de podermos aproveitar ainda mais as produções com a nossa cara e ver sagas como a d’O Eternauta, Senna e dos Buendía com a qualidade que merecem, sem nunca esquecerem de suas próprias identidades e fortalecidas ainda mais pelas produções locais.