Séries e TV

Artigo

Lembra desse? Raízes

A série que marcou a história da TV completa 30 anos

24.01.2007, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H21

Em 23 de janeiro de 1977 estreava nos Estados Unidos a minissérie Raízes (Roots), adaptação do livro de Alex Haley. Com doze horas de duração, Raízes foi exibida em um formato inusitado, oito episódios em seqüência diária, ao contrário dos capítulos semanais mais comuns na época. A produção foi a série de maior sucesso em toda a história da TV até então e os oito episódios ficaram entre os treze programas mais assistidos de todos os tempos. A Nielsen, empresa encarregada da medição de audiência no país, estima que cerca de 130 milhões de telespectadores assistiram pelo menos a uma parte da minissérie.

Mais do que um simples sucesso comercial - um programa de TV com muita audiência - Raízes foi um projeto que nasceu sob o signo do medo, se desdobrou em influência e permanece em discussão.

Time

None
A capa da Time

Raízes

None
Raízes

Alex Haley

None
Alex Haley

Kunta

None
Kunta Kintê

Livro

None
O romance

A história de Negras Raízes, o livro, começa em uma pequena vila africana em 1767 quando o jovem Kunta Kintê é capturado por caçadores de escravos. Levado para os Estados Unidos, ele recebe um novo nome e enfrenta uma nova vida como escravo. Daí em diante, o enredo segue Kunta e seus descendentes até o nascimento do autor da história, seis gerações depois.

Alex Haley nasceu em 11 de agosto de 1921 em Ithaca, estado de Nova York. Filho de professores, ele trocou a faculdade pela Guarda Costeira, onde trabalhou em diversas funções e chegou a jornalista. Em 1959 ele deixou a Guarda e passou a escrever em tempo integral para a Reader’s Digest e a Playboy, para a qual entrevistou Miles Davis, Johnny Carson e Martin Luther King, entre outros. Uma entrevista com Malcom X levou a uma colaboração dos dois em A Autobiografia de Malcolm X, publicada em 1965 e que se tornou uma grande influência no movimento negro.

Negras Raízes surgiu das histórias contadas pela avó materna de Haley, Cynthia Palmer, alforriada em 1865, que seguiam a genealogia da família até um africano chamado "Kin-tay", trazido como escravo para os Estados Unidos, onde recebeu nome de Toby.

Haley passou onze anos pesquisando o assunto até chegar à vila de Juffure, em Gâmbia, onde um contador de histórias, ou griot, confirmou a seqüência de eventos contando a história oral do desaparecimento de Kunta Kintê.

Roots - The Saga of an American Family (Raízes - A Saga de uma Família Americana) foi publicado em 1976. No ano do bicentenário da independência dos Estados Unidos, o livro foi um sucesso de crítica e público, com mais de oito milhões de cópias vendidas. O enredo negava a visão dos escravos como dóceis e desinteressados em sua cultura africana. Ao contrário dos escravos nascidos nos Estados Unidos, no livro, Kunta sabe ler e falar árabe, rejeita o nome que lhe dão, e passa à sua filha histórias de sua vida na África e palavras de seu idioma original.

O livro recebeu menções especiais dos comitês do prêmio Pulitzer e do National Book Award e foi traduzido em 26 idiomas.

A Minissérie

O sucesso do livro levou a ABC a produzir a adaptação, embora a crença no sucesso não tenha sido muito grande.

Temendo que o assunto não atraísse muita audiência, a emissora decidiu exibir a série toda em uma semana não como uma estratégia, mas, como uma maneira de se livrar logo da produção caso os números fossem baixos.

O elenco incluiu veteranos como Ralph Waite, Ed Asner, Louis Gossett Jr e Lloyd Bridges ao lado do estreante LeVar Burton, o futuro comandante George LaForge de Jornada nas Estrelas - A Nova Geração, em seu primeiro papel na TV. Asner interpretou um personagem não existente no livro, um homem branco com consciência em relação à escravidão. Seria uma forma de tornar a história mais palatável à audiência branca.

A série repetiu o sucesso do livro, acumulando nove Emmys, um Globo de Ouro e um Peabody Award, embora alguns críticos tenham apontado o dedo para a ênfase na violência e no romance. Apesar de mostrar a saga de uma família negra, a história conseguiu capturar a atenção de pessoas de todos os grupos étnicos e tornou-se um dos maiores recordes de audiência de toda a história da TV.

Fato e Ficção

Os problemas para Haley começaram quando Harold Courlander leu Raízes e apontou 81 trechos retirados de The African, seu livro publicado em 1967. Courlander, um folclorista que recolhia histórias africanas há mais de trinta anos, também apontou semelhanças entre personagens e roteiro.

Um processo de quebra de direito autoral foi aberto em 1978. Alex Haley declarou sob juramento que não conhecia o trabalho de Courlander e que, portanto, a apropriação havia sido não intencional. A defesa de Haley caiu por terra quando três citações tiradas de The African foram encontradas entre suas notas datilografadas. Em breve, seria possível notar que estava em jogo mais do que direito autoral. O processo ameaçava destruir a reputação do autor que havia se tornado um herói da comunidade negra num país onde a luta pelos direitos civis havia deixado cadáveres pelo caminho, incluindo o do defensor da ação pacífica, Martin Luther King.

Perto de ser acusado de perjúrio, Haley fez um acordo com Courlander com um pagamento de 650 mil dólares. Em troca, Courlander aceitou manter silêncio sobre o assunto, o que fez até sua morte em 1996.

Especialistas em genealogia também mostraram sem sombra de dúvida que Haley jamais foi capaz de realmente traçar sua descendência desde um escravo africano capturado em Gâmbia até ele mesmo, passado pelo nome do navio que teria trazido Kunta Kintê até os Estados Unidos.

Em um artigo publicado em 1984, os especialistas em genealogia Gary Mills e Elizabeth Shown seguiram a pesquisa de Haley pelos arquivos dos estados da Virgínia, Carolina do Norte e Maryland e descobriram mais do que erros comuns a pesquisadores inexperientes em genealogia. Em Raízes, Alex Haley conta como descobriu que o navio Lord Ligonier havia trazido Kunta para os Estados Unidos em 1767. Gary Mills, no entanto, descobriu que o escravo chamado Toby, que Haley identifica como sendo seu ancestral, Kunta Kintê, estava nos Estados Unidos desde 1762. Além disso, Toby morreu oito anos antes do ano apontado por Haley como a data de nascimento da filha do escravo, Kizzy. Quanto ao griot africano que havia validado a história, Kebba Kanji Fofana, ele foi descrito como um conhecido trapaceiro que simplesmente havia dito aquilo que o visitante estrangeiro queria ouvir. Segundo o artigo, Fofana sequer seria um griot oficial e já havia contado uma história diferente da família Kintê para outro pesquisador.

Em 1993 os fatos por trás de Raízes, e a proteção dada ao seu autor, vieram novamente a público num artigo escrito por Philip Nobile para o influente jornal Village Voice. Utilizando as notas e escritos do próprio Haley como material de pesquisa, Nobile trouxe a público em "Uncovering Roots" (Descobrindo Raízes) o processo movido por Courlander e o acordo, bem como a pesquisa genealógica feita por Mills. Nobile também revelou que uma boa parte de Raízes havia sido não só revisada, mas, cortada e reescrita pelo editor de Alex Haley na Playboy, Murray Fisher, um homem branco.

O trabalho de Nobile chamou a atenção da BBC, que produziu um documentário a respeito. O programa, no entanto, jamais foi exibido nos Estados Unidos. Apesar das provas, a série e o livro continuaram a ser utilizados nas aulas de história e o Pulitzer continuou nas mãos do escritor. O jornal The New York Times limitou-se a comentar o documentário da BBC em um parágrafo onde dizia apenas que a família de Haley negava as acusações.

Mais que um programa

Raízes foi além de um sucesso de audiência. Em uma matéria de capa sobre a série, por si só um fato notável, a revista Time mostrou que bares e restaurantes perderam dinheiro durante as noites em que a série foi exibida, e só conseguiam manter o público se sintonizassem a TV nos canais que exibiam o programa.

No melhor estilo novela das oito brasileira, milhares de bebês ganharam nomes de personagens da série, incluindo Kizzy, um nome comum dado a muitas filhas de escravos, mesmo aquelas sem conexão com a África. Uma onda de interesse pela genealogia varreu os Estados Unidos e outros lugares onde o programa foi exibido.

O sucesso da série foi motivo de debates que procuravam saber se o programa iria melhorar as relações raciais ou aumentar a tensão. O mesmo artigo da Time relatava casos de estudantes brancos perturbando alunos negros e de jovens negros atacando quatro brancos em Detroit aos gritos de "Raízes, raízes, raízes."

Em 1979 a série ganhou uma seqüência, Roots: The Next Generation, seguindo a história pelo período de 1882 a 1967. Uma segunda seqüência, Roots: The Gift também foi produzida como um filme de Natal, mas, como tudo que parece ser apenas uma desculpa para capitalizar um pouco mais com um programa que o público gostou, o longa é considerado inferior à série original.

No Brasil a minissérie foi exibida aqui pela Globo e pelo SBT. O impacto foi similar e nos anos 70 e 80 qualquer brasileiro entenderia referências a Kunta Kintê como uma busca pelo passado de uma família. Em 2004 a série resurgiu no Retro Channel.

Faction

Após o processo e as discrepâncias descobertas na genealogia, Haley passou a descrever Negras Raízes como "faction", uma mistura de fato e ficção, reconhecendo ter criado uma boa parte da história.

Não há crime em utilizar dados históricos como cenário e criar personagens ficcionais, assim como não há dúvidas quanto à realidade da escravidão. A capa da primeira edição de Raízes, no entanto, não apresenta a indicação "a novel" (um romance) que avisa ao público que nem tudo em suas setecentas páginas é fato cientificamente provado e passível de verificação.

O estranho na história de Haley e seu livro é a manutenção de seu status de celebridade e de autor de não-ficção a ser estudado nas escolas com um trabalho que está longe de ser um retrato fiel da verdade. Em uma situação semelhante em 2006, o site Smoking Gun publicou um artigo em que mostrava que vários pontos da autobiografia de James Frey, Um Milhão de Pedacinhos, foram criados pelo autor. Assim como em Negras Raízes, faltou na capa de Um Milhão de Pedacinhos a indicação de que se tratava de uma criação.

A situação, no entanto, é muito diferente do ano do bicentenário da independência. Frey caiu em desgraça e a editora responsável pelo livro informou que devolveria o dinheiro de quem comprou o volume pensando ser um relato não ficcional. A questão disparou um debate sobre as expectativas do leitor e quanto de verdade deve conter um livro para ser apresentado como autobiografia e não ficção.

Nada disso abalou a posição de Haley. Embora ele não seja citado em antologias de especialistas em literatura afro-americana, Negras Raízes capturou o interesse dos leitores e lá permanecerá. Mesmo que a história de sua família não seja exatamente essa.

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Ao continuar navegando, declaro que estou ciente e concordo com a nossa Política de Privacidade bem como manifesto o consentimento quanto ao fornecimento e tratamento dos dados e cookies para as finalidades ali constantes.