Law & Order e a vida longa e próspera das criações de Dick Wolf
Na estreia brasileira do 400º episódio de Law & Order: Special Victims Unit, descubra o poder das criações de Dick Wolf
Algemas, uma fita de isolamento de cena de crime, um quepe de polícia e a silhueta de Nova York. Seria uma decoração um tanto estranha para um bolo de aniversário se a festa não fosse a comemoração do 400º episódio de Law & Order: Special Victims Unit, a uma das mais longevas séries em exibição no momento nos Estados Unidos - em sua 18ª temporada, o procedural perde apenas para os 28 anos de Os Simpsons. Para os canais abertos, hoje devorados pela TV por assinatura e serviços de streaming, é o equivalente ao Santo Graal. E seu criador está longe de ter esgotado sua capacidade de gerar criaturas.
Autor de slogans para creme dental e empresas aéreas, Dick Wolf migrou da publicidade primeiro para o cinema como roteirista (Código de Honra, A Farsa) e depois para a TV. Na tela pequena a estreia foi na aclamada Chumbo Grosso (Hill Street Blues, 1981–1987). Produzida com uma liberdade criativa poucas vezes concedida na TV, a série de Steven Bochco e Michael Kozoli desmantelou o modelo existente de série policial com narrativas interligadas, câmera manual, linguagem carregada e um enorme elenco de atores talentosos, mas pouco conhecidos, em histórias que exploravam mais os relacionamentos entre os personagens do que o crime da semana.
A temporada como roteirista de Chumbo Grosso, e mais tarde como produtor de Miami Vice (1984–1990), outra série policial que fez escola, pavimentou o caminho para Wolf criar sua própria empresa. A ideia para Law & Order surgiu em 1988 e chegou a se chamar “Noite e Dia”, entre outras opções para descrever a divisão no roteiro. Em cada episódio de uma hora, os primeiros trinta minutos seriam dedicados à investigação policial, ficando a segunda parte para a sequência do caso no judiciário. Feliz por sua ideia original, Wolf descobriu ao apresentar a proposta a Kerry McClugagge, presidente da Universal Television, que na verdade outra série já havia explorado o formato. Em 1963, Arrest and Trial seguia o mesmo molde com Ben Gazarra (O Grande Lebowski) e Chuck Connors (Três Dias para Matar) nos papéis principais.
Havia, no entanto, uma diferença: em Arrest and Trial o caso começava com a prisão de um suspeito que no bloco dedicado ao judiciário era inocentado pelos advogados de defesa. A ideia de Wolf inovava ao deixar de lado os advogados de defesa em favor dos promotores, que até ali eram basicamente os vilões das séries policiais. O projeto carregava visíveis influências de Chumbo Grosso no trabalho de câmera, linguagem e no elenco sem estrelas, embora se afastasse da série de Bochco e Kozoli ao ignorar a vida pessoal dos personagens. Havia ainda um elemento essencial na série rejeitada pela FOX e CBS antes de ser aprovada pela NBC: Nova York. Não Toronto ou Los Angeles maquiadas para interpretar Nova York ou a rua nova-iorquina de um estúdio. Para sua série, Dick Wolf exigiu desde o início filmar na própria cidade, um custo adicional na época de 75 a 80 mil dólares por episódio. Hoje, a ideia pode não parecer estranha, mas nos anos 90 uma disputa entre os sindicatos de profissionais de TV e os produtores levou ao boicote da cidade como locação.
Nascido e criado em Nova York, Dick Wolf insistiu na autenticidade não apenas do cenário que aparece através das janelas e em volta de seus personagens, mas também do elenco. Com trinta a quarenta personagens com diálogo por episódio, Law & Order tornou-se um dos maiores empregadores da cidade, o que certamente ajudou Wolf a negociar com os sindicatos os contratos que viabilizaram a produção. Para os atores locais, de James Earl Jones em 1993, aos astros do musical Hamilton, Daveed Diggs e Anthony Ramos em 2016, tornou-se comum dizer que os únicos atores da cidade sem um crédito na série eram os que haviam acabado de chegar na rodoviária.
A história de longevidade de Law & Order, no entanto, teria outro fim se a série tivesse estreado no cenário de demanda por resultado imediato de hoje. Nas primeiras três temporadas, o programa exibiu baixos números de audiência, e só a partir daí passou a crescer de forma estável. Armada com seu formato simples e foco na história que permitiu a troca constante de elenco mesmo entre os personagens principais, a série tornou-se cronista do período de recuperação de Nova York, quando as taxas de criminalidade baixaram de forma nunca vista. Um caso de simbiose que não aconteceu sem seu próprio percentual de drama local. Os assistentes de produção passam a noite em carros estacionados nas ruas para reservar lugar para os veículos da produção, e os avisos de filmagem nos postes, que tanto atraem os turistas, irritam muitos os moradores. Rejeitada em 1991, seis anos depois Nova York tornou-se a segunda cidade mais importante na produção de TV, com mais de cem séries e programas saindo dos estúdios locais. Creditada como responsável por parte desta mudança, Law and Order expandiu primeiro para um longa, Exiled, e em 1999 para seu primeiro derivado, a aniversariante Law & Order: Special Victims Unit.
Assim como os episódios da série original, apelidada de nave-mãe pelo elenco, a derivada nasceu de um caso real. Em 1986 um homem estrangulou uma garota durante uma sessão de sexo descrita por ele como consensual. Já explorado em um episódio de Law and Order, o caso voltou a Dick Wolf como inspiração para a nova série dedicada aos policiais e promotores de casos de conotação sexual, mas o projeto só saiu do papel graças ao sucesso do original. Para o estúdio, havia dúvidas se o público gostaria de dedicar seus momentos de lazer assistindo a casos de pedofilia, estupro e tortura. Dezoito temporadas depois, o bolo com algemas prova que o gosto popular mistura sadismo e voyeurismo em partes assustadoras. Escalados para os papéis principais, Christopher Meloni e Mariska Hargitay saíram do anonimato como Stabler e Benson. Dois anos depois, Wolf foi adiante com mais um derivado, Law & Order: Criminal Intent (2001–2011) e uma nova dupla, Vincent D´Onofrio e Kathryn Erbe como Goren e Eames, desta vez acompanhando a equipe dedicada aos crimes de alto impacto. Ironicamente, os dois derivados caminharam em direção oposta à série original, apoiando-se no carisma, na interação da dupla principal, que permaneceu fixa pela maior parte das temporadas e no caso principalmente de D´Onofrio, beneficiou-se da forte caracterização do personagem.
A expansão do universo Law & Order (cuja série original foi encerrada me 2010) teria ainda mais dois derivados, Law & Order: Trial by Jury (2005–2006), que mostrava a preparação das equipes de advogados e promotores para os julgamentos e Law & Order: LA (2010–2011), mais conhecida como LOLA, uma tentativa de recriar o original em Los Angeles. Dois fracassos pelos padrões de Wolf, ambas foram canceladas na primeira temporada, mas somadas à britânica Law & Order: UK (2009– ), à francesa Paris Enquêtes Criminelles e às versões russas de Criminal Intent e Special Victims Unit, formam um enorme corpo de mais de mil episódios que reprisados e exibidos em diversos horários deram à franquia a fama de estar constantemente no ar em algum lugar do mundo.
Muito antes do streaming tornar hábito assistir a uma única série, nevascas, furacões e tufões foram suportados por longas maratonas da criação de Dick Wolf, cuja fórmula, apesar de alguns sinais de esgotamento, segue viva e forte. Hoje sem o parceiro original, Hargitay viu sua personagem ser sequestrada, torturada e promovida, chegando ao 400º episódio, “Motherly Love”, como diretora e mostra a enorme capacidade de adaptação da série às mudanças políticas e sociais das últimas duas décadas.
E se a faixa etária do público de suas séries segue em torno dos 50 anos, isso não parece preocupar Wolf, que já está na gestão de outra franquia em expansão, desta vez baseada em Chicago. Juntas, Chicago Fire, Chicago P.D. e Chicago Med não prometem revolucionar o gênero como Chumbo Grosso, não recebem muitos elogios da crítica ou mesmo indicações a prêmios como o Emmy ou o Globo de Ouro. Mas somados a Law & Order: SVU, chegam a cerca de 40 milhões de telespectadores considerando apenas o público de episódios inéditos das produções de Wolf. Número que promete subir com a estreia esta semana de Chicago: Justice, que adiciona advogados à franquia que já retrata bombeiros, policiais e médicos. Pode ser o triunfo da fórmula sobre o conteúdo, com ocasionais roteiros memoráveis e interpretações imperdíveis, mas funciona. E Wolf já anunciou que não pensa em se aposentar tão cedo.
Exibido em fevereiro nos EUA, o 400º episódio de Law & Order: Special Victims Unit vai ao ar no Brasil hoje (7), às 22h, no Canal Universal.