Entrevista Com o Vampiro: O equilíbrio entre AMC e Anne Rice

Créditos da imagem: AMC/Divulgação

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Entrevista Com o Vampiro: O equilíbrio entre AMC e Anne Rice

Será possível adaptar As Crônicas Vampirescas de Anne Rice por uma ótica comercial equivalente ao público do canal AMC?

Omelete
6 min de leitura
07.10.2022, às 14H53.

Bram Stoker é considerado o grande pai da cultura vampiresca que se impregnou no imaginário de todos nós até hoje. Drácula, sua grande obra, foi publicada em 1897, numa linguagem quase documental, que estava, aliás, bem à frente de seu tempo. Drácula foi escrito apoiado em uma mitologia já estabelecida, mas foi esse livro que demarcou primeiro quais seriam as regras e referências do gênero. O Drácula de Bram era uma criatura desalmada e por vezes grotesca, que paria outros iguais a si, formando um séquito de monstros declarados.

Quase um século depois, em 1976, Anne Rice fez seu debut nas livrarias com um romance que deixou o mundo todo em choque. Entrevista Com o Vampiro começava com o escritor Daniel recebendo a visita de um homem peculiar, sombrio, que queria contar a própria história e registrá-la de forma definitiva no mundo. O homem dizia-se um vampiro e apesar de começar a ouvir com um ceticismo natural, logo Daniel foi sendo levado a crer que aquela incrível narrativa tinha elementos de potencial emocional imensos demais para não resguardarem alguma verdade.

O susto do mercado literário e o deleite dos críticos e leitores estava não só na escrita elegante e erótica (cheia de melodia gótica) de Anne Rice, mas também naquela que seria a grande liberdade da autora diante do que Bram havia estabelecido no passado: os vampiros de Rice tinham ainda uma alma humana, uma consciência humana; e apesar de serem monstros, ainda sentiam afeto, alegria, tristeza e principalmente... culpa. Imagine precisar matar para sobreviver, mas não perder, ao mesmo tempo, sua capacidade de empatia pela própria presa? Era assustador.

Desde então, a saga que ficou conhecida como As Crônicas Vampirescas ganhou 12 livros principais (considerando a retomada depois de um longo hiato em que Anne desistiu de escrever sobre vampiros), dois volumes de uma trama com bruxas que passou a traçar crossovers com os vampiros (e que já foi anunciada para 5 de Janeiro pela AMC) e vários spin-offs focados em outros vampiros e entidades que não tinham muita relevância para os volumes principais. Isso promoveu uma mitologia muito específica, muito detalhada e muito intrínseca.

Em 1994, o diretor Neil Jordan levou a história de Entrevista Com o Vampiro para o cinema num filme de extremo sucesso estrelado por Tom Cruise e Brad Pitt. A própria Anne escreveu o roteiro, rejeitou profundamente a escalação dos atores e depois acabou caindo de amores pelo resultado. Foi uma adaptação tão poderosa que era difícil conceber uma nova tentativa que fosse tão bem sucedida quanto. Assim que o primeiro trailer da nova série de TV foi liberado, e Jacob Andersen apareceu como Louis, começaram as dúvidas. Um Louis preto soava como um ultimato dos produtores: aceite que vamos mudar as coisas... ou desligue sua televisão.

AMC

A rejeição à ideia de ter um Louis preto tinha suas raízes no mesmo argumento que assolou a escolha da nova Ariel. Contudo, no caso de Louis, a questão era ligeiramente mais complexa, uma vez que o personagem era branco numa época em que ainda existia escravidão e isso, é claro, pautou alguns pontos importantes da história. A escalação de Jacob obrigaria o roteiro a se reorganizar. Considerando que esse era exatamente o plano dos produtores, a chorumela sobre se aquela era ou não uma escalação correta dependeria de uma única coisa: abordagem.

Como se sabe, o AMC é um canal que se estabeleceu no território zumbi... um território que já está cansado, exausto até; e que precisa ser superado em algum momento. Temos a HBO com A Casa do Dragão, a Amazon com Os Anéis de Poder... é claro que o AMC também queria uma adaptação literária para chamar de sua. As Crônicas Vampirescas não são tão populares, mas tem muito material, tem um universo extenso e poderiam manter o canal em sua base sobrenatural - se é que podemos chamar assim. Zumbis, vampiros... A marca da AMC era uma preocupação dos fãs dos livros; e uma preocupação que se mostrou justificada, embora não tão pesarosa quanto eles podiam imaginar.

Louis & Lestat

A grande controvérsia em torno de Entrevista Com o Vampiro não é – pelo menos até agora – a mudança na trama central. Basicamente, o miolo está lá. Louis virou uma espécie de cafetão das ruas de Nova Orleans, cuidando de negócios com prostituição e jogatina. Mas, apesar dessa transformação de cenário para ele, o personagem, em essência, ainda está ali. Depois de passar por uma grande tragédia ele entra no radar de Lestat (Sam Reid), que decide tomá-lo como companheiro, transformando-o e tutelando seu pupilo pelo mundo das trevas, precisando ensinar a ele como se misturar entre os humanos e como aceitar o assassinato como parte de sua existência.

Ao passar pela lente da AMC, os vampiros de Anne Rice foram turbinados e os modos sinuosos de Lestat, assim como sua elegância para “nunca desperdiçar nenhuma gota”, acabaram substituídos pela voracidade de ataques desleixados, com gargantas rasgadas, sangue jorrando e cabeças sendo destroçadas. Foi a concessão necessária para que, ao mesmo tempo, a linguagem homoerótica e os diálogos cheios de psicologia horrorífica permanecessem intactos. Louis e Lestat ainda falam um com o outro com desejo, com melancolia, com devassidão... e em muito pouco tempo tela já construíram uma ligação ao mesmo tempo terna e perturbadora.

Para os leitores das Crônicas pode ser enervante ver Lestat fumando ainda que na mitologia de Anne tenha sido estabelecido que o corpo dos vampiros é animado de maneira sobrenatural, mas está fisicamente morto, o que os impede de respirar, produzir fluidos ou ter funções sexuais. Eles são capazes de fingir algumas dessas coisas para se misturar, mas essas regras são importantes, uma vez que são elas que diferem a criação de Anne de outras tantas que existem por aí. E a mitologia criada por Anne é muito rica... A forma como os vampiros são transformados, a ética que cerca a decisão de fazê-lo, o papel dos antigos na organização dessa sociedade... como parte da literatura gótica que domina a narrativa, a beleza, o culto ao perfeito e o erotismo que envolve esses tópicos são parte da identidade da escritora. Não é bobagem reivindicar a permanência deles na adaptação. Mas, também é preciso reconhecer quando a mudança consegue ser aliviada pelo esforço em alcançar equilíbrio. 

A série Entrevista Com o Vampiro é sim muito diferente em alguns aspectos. Ela também é muito parecida com o que conhecemos daqueles personagens. Como em toda balança, o perigo é permitir que um dos lados penda mais que o seguro para evitar transbordamentos. Lestat uma vez ensinou que é preciso saber a hora de parar de beber, ou a morte da presa te envolve e te suga com ela para a escuridão. É equilíbrio... tudo uma questão de equilíbrio. Até seu episódio número 2, pelo menos, a série conseguiu “morder” e sugar nossa atenção, o suficiente para que nos alimentemos de curiosidade para a semana seguinte. Se vamos continuar sorvendo desse gosto, só o tempo vai dizer. 

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