Baseado no romance homônimo de Milton Hatoum, Dois Irmãos segue a trajetória de uma família de imigrantes libaneses, em que o nascimento dos gêmeos Omar e Yakub (Lorenzo e Enrico Rocha) deflagra a instabilidade da rotina do casal Zana (Gabriela Mustafá e Juliana Paes) e Halim (Bruno Anacleto e Antonio Calloni). Após o nascimento dos meninos, o excesso de proteção para um e a negligência para o outro transformam a relação dos gêmeos em um épico de ódio e rancor que atravessará os tempos até que eles virem Cauã Reymond (e continuem se odiando). Tudo isso usando a Manaus dos anos 1930 em diante como pano de fundo.
A minissérie estreou na Globo com a chancela do diretor Luiz Fernando Carvalho, o que significa uma imediata aprovação crítica e um contato direto com as diretrizes visuais que já são tão características na obra do mesmo: se um personagem precisa passar do quarto para a cozinha, Carvalho provavelmente fará isso usando ângulos indiretos e o ator será visto entre cortinas esvoaçantes e frestas por todo o trajeto, reforçando a ideia defendida implicitamente por ele de que não se pode desperdiçar um só minuto de projeção com trivialidades. Cada frame passa por uma verdadeira solenidade.
É bem fácil saber quando estamos falando de algum trabalho do diretor. Assim como em Os Maias, A Pedra do Reino, Capitu e mais especificamente em Lavoura Arcaica, a literatura é transcrita com voz e imagem, numa espécie de lirismo sublinhado que tem duas funções que podem ser consideradas contraditórias: Carvalho é o único diretor que chega perto de reproduzir visualmente as experiências sensoriais de um leitor. Porém, ao mesmo tempo, faz da literalidade um problema de envolvimento. Foi justamente por causa do autor de Lavoura Arcaica, Raduan Nassar, que o projeto de Dois Irmãos foi parar nas mãos do diretor. As duas obras se traduzem na tela com um ponto em comum: o que vale mais, sempre, é a imagem.
Dois Irmãos, Um Capítulo
O primeiro momento de Dois Irmãos transforma as idas e vindas do tempo numa realidade que exige atenção. Com mais de uma hora de duração, o capítulo se dedica a mostrar como Zana e Halim se conheceram, até que o nascimento dos filhos transforme as expectativas de felicidade em um clima constante de tragédia. Para isso, contudo, a trama se desenvolve com aquela já velha conhecida grande-eloquência da assinatura da direção.
A fotografia é ostensivamente marcada, afetada, e busca significados em absolutamente todos os ângulos. O simples movimento de sair de um carro na chuva se transforma numa sequência de cinco minutos em que a veremos cair por dez óticas diferentes. E essas sequências cheias de significado aparecem em blocos, coladas uma na outra, sem dar chance ao espectador de respirar, porque logo ele precisa estar atento ao novo momento de emoção sendo criado diante da tela.
A atuação de Juliana Paes é impressionante, inegavelmente. Todo o elenco é nivelado para cima, como não poderia deixar de ser numa produção de Luiz Fernando Carvalho. De outra forma, inclusive, não seria possível. Assim como as sequências visuais se interligam com uma constante busca de sensações e significados, as interpretações dos atores seguem o mesmo parâmetro. Há dois ou três diálogos triviais. O resto é quase sempre sussurrado, lacrimejado.
O resultado desses elementos todos é uma adaptação que hora parece redundante - com trechos literários sendo narrados por cima de uma imagem já bastante significativa - e hora parece voluntariosa, discutindo com a dramaturgia com argumentos estéticos. Com personagens como a de Maria Fernanda Cândido, é quase cartunesco, teatralizado (algo com o qual ele vem flertando há algum tempo). Nada é natural, humano, simples. E é curioso, porque o que esse tratamento de imagem todo parece almejar é justamente a essência da emoção humana.
Não é uma postura artística certa ou errada, é uma postura artística, enfim. Em perspectiva, não é só o trabalho de Carvalho que aparece como exemplo de grande apuro técnico e dramaturgia controversa. A evolução das minisséries globais - e produtos da mesma faixa de horário - têm ido numa direção bastante parecida. Debruçam-se em uma identidade visual muito forte e negligenciam premeditadamente o roteiro, porque subentende-se que belo e bom estão vibrando numa mesma onda.
É claro que Dois Irmãos acabou de começar e é cedo para dizer como ela desenvolverá todos os anos de história que tem pela frente. Contudo, a busca pelo deleite da imagem nos afasta do anseio principal da dramaturgia: a catarse. O belíssimo trabalho de Luiz Fernando Carvalho soa sempre como uma pintura expressionista - pode-se não entender de cara, não vai te fazer pular do sofá, mas te torna mais culto só de olhar para ela.