A crítica abaixo tem spoilers dos dois primeiros episódios de Demolidor: Renascido. Para ler um texto sem spoilers, clique aqui
Se na DC, heróis são comumente associados às cidades (Batman e Gotham, Superman e Metropolis), na Marvel isso não é tão presente. Claro, há inúmeros personagens patrulhando as ruas de Nova York, mas nem todos são inseparáveis do local – o Quarteto Fantástico está localizado no Edifício Baxter, mas fica mais em casa no espaço do que nas bodegas do Bronx, Queens ou Hell’s Kitchen. É diferente do Homem-Aranha e, como mostra Demolidor: Renascido, do Homem Sem Medo.
Os dois primeiros episódios da série, que continua a história da Demolidor originalmente exibida na Netflix mas que não requer mais do que um conhecimento básico do personagem para ser aproveitada, mostram que a relação de Matt Murdock (Charlie Cox) com Nova York será ainda mais explorada do que nas três temporadas anteriores, e os temas abordados – que incluem a eleição de figuras perigosas com promessas ousadas e violência policial – são profundamente atuais. É imediatamente refrescante assistir a uma produção do MCU que é tão claramente parte de um mundo real. Tanto pela narrativa quanto pelo uso de locações reais, um oásis depois do deserto de cenários digitais horríveis que poluem os filmes recentes do estúdio, Renascido não demora a nos convencer da existência desses personagens e dessa cidade. Consequentemente, é mais fácil comprarmos o drama. E não falta drama.
Uma das coisas que facilita essa aproximação do Demolidor e da cidade, e das discussões sobre justiça e problemas sociais da metrópole norte-americana, é que Matt tem apenas uma cena como o herói nos primeiros dois episódios. Ela vem durante os 15 primeiros minutos do capítulo inicial, quando o bar de policiais onde ele, Foggy (Elden Henson) e Karen (Deborah Ann Woll) estão bebendo quando são interrompidos pela ligação de um cliente que, ao receber ameaças, foi escondido por segurança. Matt entra em ação, e deixa os amigos para trás. Assim, a armadilha é iniciada.
A série deixa a entender que o Demolidor será atacado, mas é Foggy quem é o verdadeiro alvo. Para piorar, o homem mirando nunca erra. Benjamin Poindexter (Wilson Bethel), o psicopata vilão da terceira temporada da série original, é conhecido como “Bullseye”, ou “Tiro-no-Alvo” em inglês (o nome brasileiro do personagem é bem menos inspirado: Mercenário), e depois de balear Foggy, começa a matar os policias dentro do bar e só é derrotado depois de uma longa sequência (filmada, claro, sem cortes) de luta contra Matt. Violenta e brutal como os fãs do Demolidor gostam de ver, a trocação termina com os dois no telhado, onde Matt escuta o coração de Foggy parar e abandona qualquer cuidado. Ele joga o Mercenário do último andar para sua aparente morre. Poindexter milagrosamente sobrevive, mas Foggy não.
Cortamos para um ano depois, e tanto pela morte do seu amigo quanto pela forma violenta como encerrou o combate com Mercenário, Matt Murdock abandonou o manto do demônio e atua apenas como advogado. Reencontramos Matt testemunhando contra Poindexter no julgamento, e depois que o vilão é sentenciado a vida atrás das grades, descobrimos que ele e Karen não se falam mais, e que a Nelson, Murdock & Page acabou. Felizmente, isso melhorou a carreira de Matt. Ao lado de Kirsten McDuffie (Nikki M. James), ele iniciou a Murdock & McDuffie, uma firma que está em ascensão mas ainda abre espaço para ajudar pessoas inocentes que não têm como pagar por bons advogados, e quanto Matt descobre as acusações contra Hector Ayala (Kamar de los Reyes, que faleceu depois de gravar a temporada). O homem que secretamente atua como o Tigre Branco é acusado de matar um policial, mas graças aos seus poderes, Matt sabe que isso não é verdade.
O caso de Hector permite que a série toque num dos assuntos mais sensíveis dos últimos anos nos EUA. Como a série vai lidar com violência policial é algo que ainda precisamos ver, mas é intrigante entender que isso será parte da história. Hector foi preso quando interrompeu uma surra que dois detetives estavam dando num homem, um informante da polícia, indefeso – no processo, um deles tropeçou nos trilhos do trem – e mais tarde descobrimos que um deles possui uma tatuagem do Justiceiro (Jon Bernthal). Frank ainda não ressurgiu, mas suas táticas violentas parecem ter inspirado supostos agentes da lei a resolverem as coisas com as próprias mãos.
Outra polêmica que a série parece disposta a encarar é a da política, já que enquanto tudo isso rola, Wilson Fisk, o Rei do Crime (Vincent D’Onofrio) ressurge, se candidata, e vence as eleições para prefeito de Nova York. Um clássico acontecimento dos quadrinhos, a eleição de Fisk vem com alusões claras a Donald Trump, incluindo bonés, e levanta a bandeira dos tais salvadores políticos que ganham força no mundo todo ao prometerem cortar a burocracia e quebrar o sistema para o bem da população.
A questão é que Fisk parece genuinamente interessado. Enquanto sua esposa, Vanessa (Ayelet Zurer), assume o império criminosos – mas se afasta dele, eventualmente levando os dois a buscarem terapia de casal com Heather (Margarita Levieva)... a nova namorada de Matt! – Wilson promete estar caminhando de maneira honesta e até busca se conectar com a população mais jovem através de BB Ulrich (Genneya Walton como a sobrinha de Ben Ulrich, repórter visto na série original), uma jornalista cujos vídeos para redes sociais ajudam a perpetuar a ideia de Renascido como algo focado em NYC e que é amiga de Daniel (Michael Gandolfini), membro mais novo (e dedicado) do gabinete do prefeito. É cedo demais para ter certeza disso, mas a maior evidência da boa-vontade de Fisk vem na melhor cena destes primeiros episódios.
Numa clara alusão ao lendário encontro de Al Pacino e Robert De Niro em Fogo Contra Fogo, Demolidor: Renascido coloca Matt e Fisk frente-a-frente num diner. Os dois passam por um mix de emoções. Diante de tantas mudanças, há um certo conforto em encontrar um rosto familiar, e a trégua entre eles permanece, mas não – como em Fogo Contra Fogo – sem que cada um deixe uma ameaça para o outro. Matt diz que se Fisk sair da linha, ele estará lá. Fisk, cuja campanha inclui a promessa de banir heróis mascarados, garante que se o Demolidor renascer, ele será perseguido. Sabemos que é questão de tempo até os dois se reencontrarem depois disso. Quando isso acontecer, ainda haverá paz?