As relações entre EUA e Rússia sempre foram um grande foco da teledramaturgia estadunidense, que usava o advento da Guerra Fria como ponto de tensão específico para trabalhar extremismos culturais determinantes. Os EUA mantinham um senso de superioridade nacionalista que transformava seus métodos capitalistas num arauto de liberdade e prosperidade, quase irresistíveis aos olhares civis espalhados por nações que enfrentavam a miséria e a mortalidade. A Rússia sempre aparecia nesses enredos como uma terra inóspita, gélida e que parecia orgulhosa das próprias limitações.
Quando surgiu na televisão, seis anos atrás, The Americans prometia uma perspectiva diferente dessa estereotipação cultural típica do “orgulho americano”. E isso era inevitável quando se considerava o enredo da série: os protagonistas eram dois espiões russos que viviam há muitos anos nos EUA como simples agentes de viagem. Philip (Matthew Rhys) e Elizabeth (Keri Russell) chegaram ao país e construíram uma vida que incluía dois filhos, amigos e uma trajetória que a olho nu parecia irrepreensível. É quando a filha Paige (Holly Taylor) se torna uma adolescente desconfiada e o agente do FBI Stan (Noah Emmerich) se muda para a casa da frente que a vida dos agentes começa um gradativo colapso.
A iniciativa da trama é muito interessante. Philip e Elizabeth vivem nos EUA há quase vinte anos e a única cultura que seus filhos conhecem é a cultura americana. Eles não podem incentivar essa relação de intimidade, mas ao mesmo tempo não podem ensinar a eles sobre sua terra natal, já que o disfarce precisa ser mantido a qualquer custo. Assim, os criadores Joe Weisberg e Joel Fields acertam ao fazer com que Philip tenha a sensibilidade necessária para questionar sua trajetória no país e seu trabalho de manipulação de inocentes (que muitas vezes inclui assassinatos para proteger o disfarce). Já Elizabeth tem uma crença quase cega nos princípios políticos e culturais de seu país.
KGB x Social Network
Recentemente o governo americano divulgou trechos de um relatório que apontava o presidente Russo Vladimir Putin como orquestrador de um esquema de manipulação midiática para influenciar o povo americano a eleger Donald Trump como presidente americano. A teoria também serviu de base para os eventos atuais da série Homeland e se assemelha em certa instância às teorias políticas que dominam as redes sociais brasileiras desde o impeachment da Presidente Dilma. Nos tempos modernos a espionagem já não é tão artesanal ou direta como as de The Americans ou Alias (que movimentou a TV entre 2001 e 2006). Agora, o perigo é a palavra.
Talvez por isso assistir à série tenha sido tão fascinante. Os disfarces constantes dos agentes chegavam a extremos e muitas vezes eles precisavam até mesmo se casar com outras pessoas para plantar escutas ou acessar documentos. Eles precisavam mentir todos os dias, o tempo todo; e inevitavelmente isso foi levando a um desgaste que para Philip e Elizabeth começou a surgir de formas distintas. Para ele, enganar e matar começou a pesar cada dia mais e mesmo que para ela também fosse difícil, a saída de Philip foi desistir do trabalho, enquanto Elizabeth mergulhou nos próprios propósitos de uma maneira completamente sombria. Foi nesse cenário que a sexta e última temporada começou.
The Almost Americans
Havia muita expectativa sobre esse último ciclo da série, já que as tensões vinham sendo preparadas com extrema cautela. Enquanto Paige se aproxima da mãe e dos métodos de espionagem que ela passa a admirar, o filho mais novo se conecta ao pai, que tenta abraçar o american way of life não por considerá-lo melhor para uma nação, mas apenas para parar de sentir-se mal por enganar e matar periodicamente. A bifurcação é admirável: Philip vira um empresário solar, que vai a clubes de música country. Elizabeth se joga na escuridão, esquece a família, entra numa missão após a outra, fuma descontroladamente e parece incapaz de reconsiderar seus posicionamentos.
Com menos episódios, a última temporada precisava lidar com expectativas e isso não seria trabalho fácil para nenhum showrunner. As desconfianças de Stan, a separação iminente dos agentes, o enfraquecimento das relações... A série chegava ao final dos anos 80, quando Mikhail Gorbachev propunha reaberturas importantes para o crescimento da Rússia e a KGB ia perdendo sua força. É somente quando Elizabeth percebe que está trabalhando para que os velhos e maus hábitos dos poderosos permaneçam em vigência, que ela passa a reconsiderar suas motivações. É o que leva ao brilhante encerramento da série.
Os criadores optaram pelo minimalismo e pelo foco naquilo que sempre permeou a narrativa: as relações familiares. Ao abrir mão das mortes apoteóticas, os eventos finais sublinharam uma crueldade maior que qualquer finitude física: quando a verdade vem á tona, aquela família se desintegra. A poderosa sequência final, ao som de "With or Without You", berrava “não posso viver com ou sem você”, enquanto aqueles dois agentes que chegaram aos EUA anos atrás, pisando numa terra estranha, sozinhos, precisavam pisar em outra terra estranha, sozinhos, só que tomados do peso irônico e melancólico do fato de ser aquela terra sua terra natal. Quando o roteiro estabelece que os filhos ficam (um por escolha e outro sem direito a escolher), ele faz a analogia derradeira dessa rixa que já se estende por décadas: à América o que lhe pertence.
“Vamos nos acostumar”, diz Elizabeth ao marido enquanto olham para a Rússia que eles não conhecem mais. The Americans encerra sua vida na TV com extrema competência. O trabalho de Rhys e Russell foi irretocável, a produção envolveu com detalhes e atmosferas cheias de apuro, tudo reforçado pelo uso certeiro de trilha e texto como pouco se vê nesse agora confuso emaranhado de produções da Terceira Era de Ouro da televisão. Foi um final coeso, seguro e tomado de uma desconcertante tristeza. A família é muito importante, mas a identidade de uma pessoa, os códigos culturais que a constituem, pesam mais no fim das contas. A vida, enfim, é impossível sem reconhecimento.