Olhar Indiscreto

Créditos da imagem: Netflix/Divulgação

Séries e TV

Crítica

Olhar Indiscreto promove o mais puro caos narrativo

Produção nacional da Netflix atira para todos os lados e produz uma das piores e mais absurdas temporadas de 2022.

Omelete
5 min de leitura
02.01.2023, às 14H04.
Atualizada em 02.01.2023, ÀS 16H54

Em suas redes sociais, a Netflix promoveu uma divulgação no mínimo controversa da série brasileira Olhar Indiscreto. A plataforma publicou um banner com um guia de episódios para quem quisesse ver as cenas picantes da produção. O post tinha até mesmo a minutagem das cenas. A publicação se encheu de comentários sobre os nus de Débora Nascimento e levantou uma pergunta inevitável: por que uma série que deseja ser vista com seriedade, na íntegra, aceitaria uma divulgação que praticamente incita o espectador a só assistir às cenas de sexo?

A resposta deve ter vindo à cabeça de vocês quase que imediatamente: simplesmente porque o sexo é a única coisa realmente relevante da série. O que nos leva até outra constatação lamentável: provavelmente aquele elenco, aquelas atrizes, foram convencidas a embarcar naquela jornada sob a ideia de que esse era “mais um trabalho que mostrava a força e coragem da mulher contemporânea”, quando, na verdade, tal qual Andrew Dominik fez com Marilyn Monroe em Blonde, o que se vê na tela não é empoderamento e sim pura objetificação. Poucas vezes o significado da palavra “apelativo” encontrou tanta verdade quanto aqui. Tudo fica ainda mais apavorante quando se percebe que a série foi criada e conduzida por um time inteiro de mulheres.

Algumas das críticas sobre a série tentam ser compassivas dizendo que as intenções de todos eram boas, mas é difícil estabelecer até mesmo que intenções eram essas. É só colocarmos em perspectiva a premissa oferecida pelos criadores. Na história, a hacker Miranda (Nascimento) passa seus dias observando a vida da vizinha Cleo (Emanuelle Araújo), uma prostituta com alta clientela que aparentemente nunca fecha as cortinas. Um dia, Cleo viaja e precisa de alguém para cuidar de sua cadelinha. Miranda topa fazer a gentileza e aproveita para fuxicar na vida da vizinha. A partir daí, uma sucessão de eventos vai transformando a série num rocambole doido de erotismo e revelações esdrúxulas.

Olhar nada discreto

Se a arte se sustenta quase toda em cima dos códigos da mimese, o que se faz em Olhar Indiscreto é uma maçaroca de receitas recorrentes que deformam a narrativa e a transformam numa espécie de frankenstein dramatúrgico, com pedaços aleatórios de tudo que é possível, não importando absolutamente nenhum senso de coerência, nenhum sentido, nenhum apuro textual, entregando o elenco a um engodo superficial que se sustenta num dos maiores males da cultura pop mundial, que é a exposição gratuita de corpos, sejam eles femininos ou masculinos.

O tal Olhar Indiscreto do título emula a Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock. Na obra-prima de 1954, um fotógrafo observa os vizinhos e o roteiro não perde de vista sua premissa original, que é estabelecer no protagonista uma paranoia promovida pelos pedaços de informação conseguidas pela janela, que ele mesmo junta e teoriza. Na série da Netflix, esse “olhar indiscreto” é uma nota de rodapé e se limita aos primeiros 20 minutos de temporada. O que é mais importante é Miranda conhecer os homens com quem ela vai transar, não importa onde e nem em que circunstância. O sexo é incutido na trama a despeito de qualquer razoabilidade.

O desfile de clichês começa pelo título, mas está em tudo. A narrativa é fragmentada como em Damages (um pedaço do futuro em começos e fins de episódio); a protagonista tem uma amiga gorda para ser alívio cômico; Miranda é uma hacker infalível e consegue vídeos e fotos de qualquer coisa com a melhor resolução e os melhores ângulos do mundo; ninguém tem diálogos triviais e tudo é eloquente; além das clássicas sequências de séries eróticas – principalmente as de língua espanhola – e que se amontoam no catálogo da Netflix há anos. Está tudo lá: as lésbicas para agradar o homem heterossexual, a homossexualidade como ferramenta de choque e imoralidade; a cena de alguém sendo enterrado vivo; e a inevitável sequência numa orgia de máscaras, mirando capengamente na “homenagem” à Stanley Kubrick.

A sensação é que o roteiro foi escrito a 38 mãos, com todo mundo trazendo ideias aleatórias e decidindo usar tudo. “E se ela não fosse filha? E se elas fossem irmãs? E se ela estiver grávida? E se ele for gay? E se ele tiver um filho secreto? E se aquele cara não estiver morto? E se eles forem amantes?... É uma coisa insana. Em dado momento, um dos homens descobre que a irmã por quem ele era apaixonado era adotada e que por isso “ele não era sujo como pensava”. Eles miram em tudo de uma vez só, sem nenhum critério, sem nenhuma substância, fazendo 10 revelações por episódio sem nenhum escopo, sem nenhum cuidado... E dá-lhe mortes, mortes e mais mortes, como se elas fossem um tique nervoso.

Qualquer novela mexicana perderia feio para a quantidade de saídas rocambolescas da série, que incluem gravidez, filhos que não eram filhos, filhos descobertos do nada, irmãs separadas, irmãs reencontradas, incesto entre “irmãos”... E quando alguma dessas “surpresas” era revelada, claro que não faltava aquele “pããããããã” de impacto; um efeito sonoro delicioso em novelas, mas transfigurado nesse contexto. Contexto, aliás, que tenta existir estabelecendo passados traumáticos a absolutamente todos os personagens. A sensação é que em determinado momento, todo mundo é filho, filha, irmã, irmão ou mãe de alguém que não sabia ou escondia que era.

É possível para um elenco ir bem diante desse caos narrativo todo? Claro que não. Débora Nascimento se dedica muito e convence em grande parte dos episódios. Mas, junto com a delicadeza de Débora Duarte, são as únicas que escapam. O texto rasteiro atrapalha Emanuelle Araújo e Tânia Alves nas tentativas de humanizar aquelas vilãs afetadas. O que parece em determinado momento é que os roteiros querem que aquela seja uma série dominada por mulheres, fazendo com que todos os homens sejam inferiores. Mas, como os criadores querem surpresa a qualquer custo, todos são sacrificados no processo e acabam sendo nivelados nessa inferioridade.

Se fala muito que essa é uma produção que “fala de sexo sem tabus”. Mas, estamos em 2023. A Netflix tem Elite no catálogo, uma série jovem com duas toneladas de erotismo a cada episódio. O cinema teve Cinquenta Tons de Cinza, teve Ninfomaníaca... O que é “tabu” ainda – de acordo com a ótica de Olhar Indiscreto – já foi superado pela cultura pop há mais de uma década. É lamentável que mais uma vez estejamos diante de um investimento em uma produção nacional que não se sustenta onde mais deveria: no texto. Já passou da hora de olhar indiscretamente para esse abismo. Já passou.

Nota do Crítico
Ruim
Olhar Indiscreto
Encerrada (2022-2022)
Olhar Indiscreto
Encerrada (2022-2022)

Duração: 1 temporada

Onde assistir:
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