Cena de O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder (Reprodução)

Créditos da imagem: Cena de O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder (Reprodução)

Séries e TV

Crítica

Como toda boa fantasia, Os Anéis de Poder encontra o épico pela via do patético

Na 2ª temporada, série de O Senhor dos Anéis se torna a grande história humana que precisava ser

Omelete
5 min de leitura
03.10.2024, às 14H05.

Como acontece com tantas obras populares que são capturadas pelo inconsciente coletivo, O Senhor dos Anéis é de certa forma mal compreendida por muita gente. Não que eu queria me proclamar o único que entende J.R.R. Tolkien, mas eis um questionamento: diante da multiplicação de histórias de fantasia que ela influenciou decisivamente, e da legião de fãs que angariou, inspirando devoção quase religiosa em muitos, o que fez O Senhor dos Anéis perdurar, como história? Entre batalhas épicas e uma mitologia absurdamente detalhada, da linguística à geografia à cosmologia da Terra-média, talvez na busca desse brilho especial que fez O Senhor dos Anéis resistir ao tempo seja uma boa ideia olhar para a sua gênese.

Muito se fala sobre como as duas Guerras Mundiais do começo do século XX marcaram os escritos do autor britânico - ele lutou em uma delas, e se engajou como decifrador de códigos em outra. Diante disso, não é difícil entender o seu retrato da Terra-média como um continente marcado por conflitos entre raças, que não obstante se unem diante da ameaça de um mal maior, e cuja cooperação é a chave para a vitória do bem. O que passa despercebido nessa leitura, no entanto, é que a experiência de Tolkien com o pior e mais brutal da humanidade lhe ensinou que a cooperação (e a fidelidade, e a honra, e qualquer outra virtude verdadeira) é uma escolha consciente, e não um imperativo moral - e que, muitas e muitas vezes, todos nós cedemos à tentação de não fazer essa escolha.

A segunda temporada de O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder é um triunfo justamente por entender essa parte do ethos da saga. Em oito episódios, a equipe de roteiristas liderada por J.D. Payne e Patrick McKay toma para si a missão de revelar as fraquezas morais que tornam cada um de seus personagens (elfos e anões, homens e mulheres) seres intrinsecamente patéticos, cheios de desejos sombrios e egoístas que, mais frequentemente do que não, levam a melhor dentro de seus corações. São esses desejos que o vilão Sauron (Charlie Vickers) é mestre em explorar - não que ele precise se esforçar muito para isso, é claro. Como diz Adar (Sam Hazeldine) em certo momento da temporada, o perigo de Sauron não são suas mentiras, mas as verdades dos outros.

É daí que vem a jornada de Celebrimbor (Charles Edwards), o elfo artesão de talento e sabedoria infindáveis que, mesmo assim, sucumbe ao domínio do Lorde das Trevas quando ele apela para o seu desejo de criar algo memorável, deixar para trás um legado, fazer um nome para si, e assim deixar de ser “ignorado” pela alta corte élfica liderada por Gil-Galad (Benjamin Walker). Da egolatria à mesquinhez, do pavio curto ao apego à ilusão do conforto, Edwards mina habilmente cada uma das vicissitudes que fazem de Celebrimbor um alvo simples para Sauron, enquanto Vickers eleva a sua performance a alturas operáticas de crueldade - ainda que crueldade nascida do trauma, como sempre é - na pele do grande vilão de O Senhor dos Anéis, no fim das contas tão patético quanto suas vítimas.

Eles são frequentemente o destaque dos episódios da nova temporada, e não é por acaso: Os Anéis de Poder entende que o coração de sua narrativa, prática e emocionalmente, está nesse cabo de guerra entre dominador e dominado, que ecoa por todos os outros cantos da Terra-média explorados nesse segundo ano, elevando subtramas que pouco tinham de impacto nos episódios anteriores. Basta olhar para Adar, o pai dos orcs, que encontra em Sam Hazeldine (chamado para substituir Joseph Mawle, que viveu o papel no primeiro ano) um intérprete atencioso à mágoa, à carência e ao desespero que se escondem por trás dos olhos daqueles líderes que pregam a busca da paz… através da guerra.

Os fins que estes e todos os outros personagens de Os Anéis de Poder encontram no desenlace da temporada - que desenha um arco dramático muito claro em si, embora se localize obviamente como uma mera parte da história maior que os fãs de Tolkien já conhecem -, sejam eles trágicos ou triunfantes (ou algo no meio disso), são inteiramente dependentes de quanto tempo, e com quanta obstinação, eles se agarram aos instintos mais equivocados e sombrios de seu âmago. E, se o time de direção formado por Charlotte Brandstörm, Louise Hooper e Sanaa Hamri trabalha duro para evidenciar os milhões que o Prime Video investiu na série (belíssimos cenários, excelentes efeitos, gigantescas batalhas), a sua missão mais importante é ainda outra: a de frisar o que esse jogo de destinos proposto pela trama tem de mais novelístico.

Assim, a segunda temporada de Os Anéis de Poder é cheia de encenações blocadas com senso dramático fino: Galadriel (Morfydd Clark) em primeiro plano, contra à luz, de costas para o rei Gil-Galad e alheia às palavras do monarca enquanto relembra sua enganação por Sauron; Círdan (Ben Daniels, ótimo como sempre) entrando em cena sob a luz dourada, ao lado da carcaça de um navio em construção, acompanhado por um floreio da trilha de Bear McCreary (que, aliás, faz muito do trabalho pesado de pontuar os momentos dramáticos mais importantes da temporada); um soldado apunhalado pelas costas após demonstrar misericórdia e lealdade, simbolizando a queda irrevogável de um reino às trevas; Disa (Sophia Nomvete) entrando em cena com uma pose triunfante para proteger Khazad-Dûm.

No cumulativo desses e de tantos outros momentos, o que emerge em Os Anéis de Poder é essa ideia de que o “épico” em um “épico de fantasia” é um destino que se alcança pela via do patético. Ver personagens enfrentarem e cederem (essencial que cedam!) à tentação, ver que o mal pode se espalhar até no mais pretensamente nobre dos corações, faz com que as derrotas incorridas pelos “mocinhos” doam mais, mas também com que suas vitórias sejam mais doces, temperadas pelo desafio a quem aposta no que temos de mais mesquinho e de mais frágil - e tão frequentemente é recompensado por isso.

Nota do Crítico
Excelente!
O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder
Em andamento (2022- )
O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder
Em andamento (2022- )

Criado por: J.D. Payne, Patrick McKay

Duração: 2 temporadas

Onde assistir:
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