Já sabia da importância histórica da HQ argentina O Eternauta, criada por Héctor Germán Oesterheld e desenhada por Francisco Solano López entre 1957 e 1959. Porém, nunca tinha lido a obra até poucos dias atrás. Isso porque, além da versão original, o próprio autor se lançou a recriar a HQ em 1969 e depois ainda vieram sequências e spin-offs, com novos autores e desenhistas, o retorno de Solano López... enfim, uma bagunça digna de um viajante no tempo. Sem saber muito bem por onde começar, posterguei minha viagem a este universo até o início do ano, quando a editora Pipoca & Nanquim lançou a HQ por aqui, em timing perfeito com a estreia da série na Netflix.
E preciso dizer que valeu a espera.
Apesar de ter um estilo pesado, com muito texto, vários diálogos e recordatórios que começam em um quadro e terminam em outro, e uma história cheia de "sacadas geniais" por parte de seus protagonistas - sinal dos tempos em que foi criada -, a aventura é emocionante. Mesmo assim (ou talvez por causa de tudo isso), foram algumas semanas para conseguir terminar o livro.
Imaginava, também, que a aguardada série da Netflix seguiria a mesma toada aventuresca, que o próprio autor diz ter emprestado de Robinson Crusoé. Mas depois dos quatro capítulos iniciais a que tive acesso antes da estreia, uma coisa já estava clara: O Eternauta (2025) criado pelo cineasta Bruno Stagnaro (da cultuada série Okupas) e seu co-roteirista Ariel Staltari (que faz parte do elenco de O Eternauta) é bem diferente da HQ. Não em conteúdo, mas em foco.
A história começa igual. Um grupo de amigos que se reúne sempre para jogar truco (a versão argentina do jogo) e tomar uísque escapa da morte por sorte, perspicácia e um espírito acumulador do dono da casa onde a jogatina acontece. Eles são alguns dos poucos sobreviventes daquela estranha neve que caiu sobre Buenos Aires (e, depois descobrimos, no mundo inteiro) durante o verão, matando instantaneamente quem por ela era tocado.
Juan Salvo (Ricardo Darín) deixa de ser o dono da casa, como nas HQs, mas ganha ainda mais protagonismo e novos desafios. A trama, por exemplo, é transportada para os dias atuais, e ele agora é um veterano da Guerra das Malvinas, divorciado, que precisa achar a filha que estava na casa de uma amiga durante os eventos apocalípticos. Até por isso, Salvo passa boa parte do tempo sozinho, andando pelas ruas da capital argentina.
Na HQ, a presença de um professor de física no grupo de truco faz com que tudo seja prontamente explicado ao leitor, mas na série - ainda mais em 2025! - este excesso de exposição não funcionaria. Vivemos em uma época diferente. O futuro pós-apocalíptico infelizmente está muito perto de nós, e já sabemos tudo o que pode nos levar a ele. À equipe técnica de O Eternauta, basta garantir que a neve que cai sobre Buenos Aires seja sufocante como as máscaras velhas que os sobreviventes usam, pintando de branco a mancha da morte que toma a capital portenha.
Certamente não são mudanças que maculam a história de Oesterheld e Solano López, cujo foco principal é mostrar que a verdadeira força da humanidade está no coletivo. Aliás, o tema é certeiro demais. Neste momento em que vivemos cada vez mais afundados em celulares, a série aponta na discussão do analógico e do social. E claro que a nossa experiência recente com a pandemia de Covid-19 também vai reverberar forte na cabeça de muita gente. Afinal, de uma hora para outra, tivemos que nos fechar em casa, com medo de algo que estava no ar, e só conseguimos sair nas ruas usando máscaras. Assim como os personagens.
Cenários digitais e físicos são muito bem utilizados pela série, e quase tudo é tecnicamente perfeito, com exceção de algumas tomadas dos cascudos (os insetos gigantes e mortais que atacam os humanos), que nem sempre surgem de forma orgânica. Há também um problema na atuação dos "homens-robô", que nem sempre aparecem na tela tão sem-vida quanto a HQ os descreve. Mas o que mais senti falta foi da ação, principalmente porque estava esperando ansiosamente pela batalha do estádio do River Plate. Infelizmente, o Monumental de Nuñes aparece apenas de longe, todo aceso, como um "teaser" do que pode vir pela frente.
Ao fim do último episódio, Juan Salvo entende o que são seus "apagões" - ou seja, estes seis episódios foram apenas a introdução do que vem pela frente.Segundo o próprio Darín, os roteiros da sequência já estão sendo escritos e a expectativa só aumenta. Vamos lembrar que, na Argentina, o Eternauta é um ícone contra a ditadura, comumente visto em grafites pelas ruas. Oesterheld e suas filhas foram sequestrados e jamais encontrados durante este violento capítulo que vivemos na América do Sul. Somar tudo isso com a figura de Darín faz com que O Eternauta seja o projeto audiovisual mais importante do país vizinho em muito tempo.
A nós, espectadores, só resta esperar. Ou viajar no tempo, como o Eternauta.
O Eternauta
Criado por: Bruno Stagnaro
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