Quando se trata de mitologizar a própria história, temos que admitir: o audiovisual brasileiro ainda está alguns passos atrás de Hollywood, ou mesmo de países como a Índia e a Coreia do Sul. Enquanto k-dramas ambientados no período monárquico ou na luta pela independência da Coreia colonizada são sucesso rotineiro ao redor do mundo, e Bollywood está produzindo basicamente com RRR por ano para eternizar os heróis de sua própria luta anticolonial, a história do Brasil segue um terreno pouco explorado nas telonas e telinhas do país. Ademais, entre um Getúlio e um Olga, esse cinema histórico nacional não é só bissexto, como também um pouco dado ao didatismo, a uma documentação fastidiosa que é antitética à construção de heróis e vilões como os que perduram no cinema.
Maria e o Cangaço, nova minissérie brasileira do Disney+, chega prometendo quebrar um pouco desse ciclo. Não é à toa: difícil encontrar figuras mais cinematográficas na história do Brasil do que Lampião e Maria Bonita, o casal de foras-da-lei que epitomiza o fenômeno conhecido como cangaço no Nordeste brasileiro durante a primeira metade do século XX. Responsáveis por atos de violência extremos, mas também conhecidos por proteger uma parte da população marginalizada pelo Estado autoritário encarnado no presidente Getúlio Vargas, eles viveram no limite, se tornaram figuras míticas na mente do povo, morreram jovens e prenunciaram a chegada de uma era de repressão intensa no país.
O maior crédito de Sérgio Machado (Cidade Baixa, Arca de Noé), que serve como diretor e roteirista-geral de Maria e o Cangaço, é entender o apelo mitológico da história desse “Bonnie e Clyde do sertão”, e não perdê-lo de vista em favor de um retrato “mais exato” ou “mais autêntico” de quem eles foram. O que importa é o que eles representaram. Daí que a minissérie faz um recorte esperto, começando quando Lampião (Julio Andrade) e Maria Bonita (Isis Valverde) jã são nomes estabelecidos no imaginário popular, e inimigos públicos declarados, só para acabar segundos antes de sua queda nas mãos das autoridades. Essa é a história que Machado quer contar - o resto, ele parece nos dizer, é História com H maiúsculo, e ela é melhor deixada para as salas de aula.
Um grande trunfo da série, por exemplo, são os pulos temporais, que ela emprega com generosidade para perseguir as consequências de grandes transformações nas rotinas dos cangaceiros: vemos Maria descobrir que está grávida, por exemplo, e na sequência seguinte ela já está prestes a dar à luz. Maria e o Cangaço é uma narrativa ágil - de seis episódios que não passam dos 40 minutos, se descontados créditos e recapitulações -, e nos faz embarcar nessa agilidade não só porque ela é refrescante em um mundo de indulgência televisiva irrefreável, como também porque ela é necessária para abraçar os feitos e curvas radicais que definiram as vidas de Lampião e Maria Bonita.
Os dois, na visão da série, foram figuras de moralidade complicada dentro do contexto histórico em que se inseriram, mas também seres humanos em busca de uma assertividade que lhes parecia roubada na vida. Essa dimensão meio agridoce da vitória e derrocada do casal é capturada com grande impacto, e a dupla principal formada por Valverde e Andrade se mostra formidável, especialmente ao segurar as pontas dos momentos mais melodramáticos do roteiro. Mas a escolha pela agilidade também deságua na caricatura que acomete os personagens secundários, o que incomoda quando as viradas de trama dependem deles (atenção para o episódio 4, de longe o mais fraco da produção).
Já nas cenas de ação, Machado se mostra um diretor compenetrado, ainda que limitado pelo orçamento e por uma convencionalidade curiosa. A sua Maria e o Cangaço é lindamente ambientada, com fotografia (assinada por Adrian Teijido, de Ainda Estou Aqui) que se aproveita das vastas paisagens do sertão sem cair nos chavões fáceis de granulação e iluminação exotizantes, mas parece hesitante em deixar a mesma inventividade fluir para os momentos de adrenalina. É como se, até para legitimar a dureza dos personagens que quer solidificar como emblemas de certo Brasil, Machado sinta que não pode brincar em serviço. Mas fazer ação na tela, em seu melhor, é justamente uma brincadeira exagerada de polícia e ladrão, e Maria e o Cangaço hesita em entrar nesse jogo.
É uma pena, porque a proposta central funciona muito bem. Equilibrando a humanização e a mitologização das figuras em seu centro, Maria e o Cangaço acerta em cheio numa ficção histórica que revela mais sobre o nosso passado não por refleti-lo com seriedade ou exatidão, mas por representá-lo como arquétipo, nos termos que entendemos as narrativas que nos definem como humanidade. Lampião e Maria, anti-heróis brasileiros, merecem ser tratados como tal.
Maria e o Cangaço
Criado por: Sergio Machado
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