Cory Monteith em cena de Glee (Reprodução)

Créditos da imagem: Cory Monteith em cena de Glee (Reprodução)

Séries e TV

Crítica

Glee - O Preço da Fama demoniza série ao sensacionalizar vida de seus astros

Sem a presença de nomes relevantes e ignorando o bom senso, documentário especula em cima de especulações

Omelete
5 min de leitura
20.05.2023, às 14H31.
Atualizada em 28.02.2024, ÀS 00H45

Todos devem conhecer o conceito de “biografia não-autorizada”. Volta e meia uma delas é polemizada no mercado, quando seus objetos de escrutínio se recusam a aceitar suas existências. A biografia não-autorizada é um filão responsável pelo alastramento de mitos e especulações, onde se apoia a maioria das nossas impressões sobre celebridades. E essas biografias não são autorizadas por uma razão: há partes da vida de todos nós que fazemos questão de não mostrar para ninguém.

Ao mesmo tempo, uma biografia não-autorizada é - em primeira instância - muito mais “divertida” que uma biografia feita com o aval do próprio pesquisado. No Brasil, aliás, pipocam nas livrarias registros de memórias feitos por artistas famosos que não estão nem um pouco interessados em aspectos polêmicos de si mesmos. Então, na hora de buscar a “fofoca boa”, o melhor é ir atrás de um retrato falado, que não representa exatamente a verdade, mas tem linhas muito mais marcantes.

Glee esteve no ar de 2009 até 2015. Criada por Ryan Murphy, Brad Falchuk e Ian Brennan, a série tornou-se um fenômeno global e com isso, é claro, abriu seu lugar na galeria de assuntos potenciais para o sensacionalismo. O elenco central, formado por jovens, ajudava a construir a atmosfera: eles tinham relacionamentos entre si, desentendimentos, disputas de ego e vaidade. Nada diferente do que acontece nos corredores de qualquer estúdio hollywoodiano. Mas a fama gera o interesse, e o interesse sustenta a indústria da imagem. Quando membros do elenco começaram a morrer, esse interesse foi entupido de esteróides e o universo do “não-autorizado” se tornou um território irresistível.

O documentário Glee: O Preço da Fama foi feito nas bases de uma dessas biografias bastardas. Produzido pelo Discovery e disponível no nosso país na HBO Max, o documentário foi anunciado como uma passagem pelos bastidores da série, descritos pelos envolvidos e pelos entes queridos dos membros do elenco que faleceram. No material promocional, os rostos de Cory Monteith, Naya Rivera e Mark Salling serviam como o apelo essencial. As fotos e o título implicavam uma relação intrínseca, que para o espectador consumidor da especulação não-autorizada, era um deleite - mas que não necessariamente tem qualquer conexão com a realidade.

O caráter pejorativo do documentário fica evidente muito rápido - não porque ele está especulando sobre o que levou à morte dos atores, mas porque absolutamente ninguém relevante para a história aceitou falar com a produção. Entre os que dão seus depoimentos, temos dublês, profissionais do departamento de cabelo e maquiagem, profissionais responsáveis por cenários... e quase todos não passaram da primeira ou segunda temporada da série. Além deles, jornalistas, colegas de quarto e o pai de Naya Rivera (talvez o mais relevante dessa lista). Absolutamente nenhum desses entrevistados esteve no núcleo dos acontecimentos, e seus testemunhos são - inevitavelmente - superficiais.

Em três episódios, o documentário tenta costurar seu raciocínio em torno das mortes de Cory, Naya e Mark; contudo, apenas Cory morreu enquanto fazia a série, obrigando a produção a passar mais tempo explorando as supostas causas de sua morte. O enfraquecimento do argumento está justamente nessa dinâmica. É claro que se tornar famoso colocou sobre ele - um dependente químico em tratamento - uma pressão perigosa. Mas as mortes de Naya e Mark não tinham nenhuma ligação com a série, não vieram de nenhuma ramificação profissional, fazendo com que o link feito pelo título e pelo material promocional se esvazie de sentido.

O uso de imagens da própria série é limitado, mas os depoimentos foram gravados em locações marcantes para a história (o auditório, o pátio da escola, a quadra...). As pessoas envolvidas com a produção de Glee conseguem, de alguma maneira, dar informações sobre a rotina das gravações, contam um ou outro detalhe interessante de bastidores, mas não têm condições reais de falar sobre as vidas dos membros do elenco fora do campo da especulação. Além disso, não oferecem para o espectador nada que ele já não saiba: Cory era dependente químico, Naya não se dava bem com Lea Michele... Em alguns momentos, o documentário soa muito mais uma reunião de elementos estabelecidos do que uma peça-chave de maiores revelações.

Há um pequeno esforço para falar da indústria enquanto opressora na saúde mental dos envolvidos, e esse é sim um aspecto muito relevante da discussão. Para aproveitar o fenômeno, o elenco trabalhou demais, conviveu demais, foi pressionado demais, e o cuidado com o que isso fazia com a cabeça deles não foi suficiente. Entretanto, quando passa essa discussão pela ótica de terceiros, o documentário deixa de lado a problematização séria para dar voz ao sensacionalismo barato. Quando um barbeiro que cuidava da aparência de Cory faz sua “grande revelação” sobre o caso, o doc atinge o clímax de sua chacota.

Há uma profunda e triste coincidência em torno do elenco da série ter passado por tantas tragédias. É certo que outras séries longas devem ter perdido muitos membros da produção durante os anos. Mas, uma vez que três atores principais têm mortes trágicas, tudo que acontece sobre Glee já vem revestido de mistério e peculiaridade. Mesmo assim, ainda são coincidências. A morte de Naya foi um acidente, o suicídio de Mark em nada foi relacionado à série. O grande problema desse documentário é sensacionalizar os astros demonizando a obra.

De forma alguma Glee é inocente nessa receita (a negligência de Ryan Murphy sobre o comportamento de Lea Michele é um grande exemplo disso). Absolutamente nenhum título da indústria do entretenimento tem asas angelicais. Alguns escondem melhor seus esqueletos, outros não. Glee foi uma peça importante no mosaico histórico da cultura pop; tinha um texto inteligente, tentou prezar pela diversidade, fez música boa e cometeu erros, muitos erros, que entram nessa receita de acordo com a perspectiva de cada um.

Há uma profundidade inacessível em torno de tudo que aconteceu que esse documentário jamais poderia alcançar, mas boa parte do que é o entretenimento se baseia no raso. Glee: O Preço da Fama não esclarece nada, não revela nada, não explica nada. Ele só está ali, como um título na grade de uma plataforma de streaming, pronto para o consumo rápido e para o deleite da especulação.

É lamentável, porque provavelmente Cory, Naya e Mark não colocariam a série no primeiro lugar da lista de erros fatais que cometeram em vida (e aqui estamos, também, fazendo simples especulação). Seus talentos foram escritos na existência terrena por causa daquele coral... Se havia um preço para estar em Glee, tenho a suspeita de que eles estariam dispostos a pagar.

Nota do Crítico
Ruim
Glee: O Preço da Fama
Encerrada (2023-2023)
Glee: O Preço da Fama
Encerrada (2023-2023)

Duração: 1 temporada

Onde assistir:
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