Alma encontra boa metáfora para o luto, mas se complica no exagero mitológico
Série espanhola não se contenta com a metáfora e voa alto na construção de mundo
Créditos da imagem: Netflix/Divulgação
Duas amigas, afetadas profundamente pela perda daquela com a qual formavam um trio, se juntam numa viagem de ônibus que tem destino trágico. Um acidente no alto de uma montanha mata instantaneamente quase todos os passageiros. Então, o véu que separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos cai por um instante e revela o quanto nós não estamos seguros nem mesmo em outros planos de existência. É assim que conhecemos Alma (Mireia Oriol), uma jovem que tenta superar a partida de uma amiga e se vê diante de um segundo luto. Alma se esquece de quem era, e a série a coloca numa jornada de recuperar sua memória e ao mesmo tempo descobrir por que, depois do acidente, tantas coisas estranhas começam a acontecer.
A mente por trás desse enredo é de Sérgio G. Sánchez, roteirista de sucessos como O Impossível (2012) e O Orfanato (2007). Alma explora questões de luto e de espiritualidade, e o roteiro vai buscar elementos apocalípticos para dar sustentação a uma mitologia, numa construção de mundo que transcorre em paralelo à resolução do mistério.
Em seus nove episódios, a série busca o equilíbrio entre a jornada de Alma e o desenrolar do rocambole macabro que segue na periferia dessa construção de mundo. Além de ter trabalho para fazer com que todos os detalhes do enredo mitológico sejam compreensíveis, a direção não consegue evitar a estranheza provocada por uma sequência emocional sendo quebrada por aparições mal executadas de demônios e assombrações. Todas as vezes em que os personagens dialogam sobre o plano de ressurreição do demônio, a seriedade escorre pelos dedos de Alma. Aparentemente todo o orçamento foi usado na cena do acidente e os efeitos visuais do sobrenatural não convencem o bastante para que isso se justifique na série.
Contudo, assim que descobrimos o que aconteceu com a protagonista, a série ganha dimensão e o discurso do luto se estabelece metaforicamente como o seu grande trunfo. Logo no primeiro episódio, os reflexos de Alma e Deva se misturam num corte inspirado, que estabelece muito dos desdobramentos da trama, de uma maneira nada óbvia e muito bonita. O que nos espera em parte da resolução desse mistério é bem mais interessante do que se pode imaginar.
Se toda a trama da série se desenvolvesse somente dentro desse traço sobrenatural - envolvendo possessão, desencarnação e outros mistérios do espírito na fronteira da morte - teríamos em mãos uma poderosa peça de exploração do luto, do quanto a morte é brutal por ser impaciente; ela não espera, não aguarda que resolvamos, que reencontremos nosso caminho. Privada da vida e até do processo natural da morte, a protagonista enfrenta uma série de questões existenciais relevantes que embelezam a narrativa.
Infelizmente, Alma decide abraçar uma confusa trama mitológica e apocalíptica, que esvazia os significados grandiosos do texto e que, pelo que se pode perceber, será a força motora de uma vindoura segunda temporada. É bastante provável que a Alma que acompanhamos jamais retorne, uma vez que seu criador não compreendeu a verdadeira força de seu espírito, arrancando-o de um corpo que lhe era de direito e deixando que algo insensato e desequilibrado assumisse seu lugar.