Allen vs Farrow

Créditos da imagem: Divulgação

Séries e TV

Crítica

Allen vs Farrow condena Woody Allen depois de mais de 20 anos

Parcial e mordaz, documentário da HBO retoma acusações contra cineasta depois de décadas de absolvição pública

15.03.2021, às 15H24.

Em 1993, Woody Allen foi absolvido das acusações de abuso contra a filha de sete anos, Dylan Farrow. Apenas dois anos depois, em 1995, o ex-jogador de futebol americano O.J. Simpson seria inocentado do assassinato de sua ex-mulher Nicole Brown, mesmo com uma quantidade inacreditável de evidências que o apontavam como assassino. Anos depois, ele escreveu um livro em que descrevia “como teria sido o crime”, caso o tivesse cometido. Os Estados Unidos, que acreditaram em sua inocência depois de exaustivos embates étnicos, levaram um bofetão. Hoje, O.J. tem uma agitada conta no Twitter, que é seguida por algumas celebridades, incluindo ninguém menos que Alec Baldwin.

Não é uma surpresa, inclusive, que Baldwin também seja um dos nomes que apoia as alegações de inocência do cineasta Woody Allen. Talvez agora ele seja um dos poucos, mas de 1993 até quatro anos atrás, a vida profissional de Allen não sofreu absolutamente nenhum revés. Ele foi indicado a nove Oscar nesse período e venceu um, em 2012, por Meia-Noite em Paris. Trabalhou com grandes atrizes, como Mira Sorvino, Rebecca Hall, Cate Blanchett e Scarlett Johansson; esta última, inclusive, também deu declarações recentes em defesa do cineasta. Ao mesmo tempo, na autobiografia publicada em 2020, Allen descreveu Johansson aos 19 anos como “sexualmente radioativa" e disse que “era preciso lutar contra os feromônios”.

2014 foi o ano em que Woody foi indicado a seu último Oscar, pelo filme Blue Jasmine. Também foi naquele ano que Dylan Farrow, sua filha adotiva com a atriz Mia Farrow, publicou uma carta aberta no New York Times, detalhando os anos de abuso e afirmando que estava cansada de ver a indústria celebrando a carreira de seu algoz. Na carta, Dylan também afirmava que a mãe desistira de continuar com os processos criminais para que os filhos pudessem ter uma infância e uma adolescência normais. De fato, embora as defesas de Allen sempre usem como argumento o fato do cineasta ter sido “inocentado” das acusações, Mia foi quem saiu vitoriosa, com Allen proibido de ter contato com as crianças e obrigado a pagar mais de US$ 1 milhão em custos processuais. O comportamento dele foi citado pelo juiz como impróprio e a sua teoria de que Mia havia manipulado a filha para que ela falasse do abuso foi descartada.

Contudo, no decorrer dos anos, Mia Farrow foi perpetuada pela mídia como uma mulher amarga e mentirosa; e a filha Dylan, a vítima, como um meio para conseguir a vingança. Por mais de 20 anos, Woody Allen seguiu com sua carreira normalmente, desfrutando da correnteza natural do machismo estrutural quando se trata de acusações de abuso e assédio: a culpa é sempre da vítima. Ao lado de sua esposa Soon-Yi (que era uma das filhas adotivas de Mia e que começou um relacionamento com ele quando tinha apenas 18 anos), Allen escapou do escrutínio numa época em que não era midiaticamente interessante rotular negativamente os acusados. Depois da carta de Dylan e do documentário Allen vs Farrow, da HBO, as manchetes tomaram outra direção.

Do lado de quem?

Allen vs Farrow foi recebido com reservas. Dirigido por Kirby Dick e Amy Ziering, o documentário tem uma agenda e ela fica muito clara desde o primeiro episódio: Allen é culpado. Embora a cada final de episódio uma legenda informe que a contraparte foi procurada para entrevistas, dificilmente o resultado teria sido outro caso essa contraparte fosse ouvida. Kirby e Amy acreditam em Dylan e o objetivo da série documental é o mesmo de Leaving Neverland (sobre Michael Jackson): conduzir o espectador até uma única conclusão possível, ouvindo somente as vítimas e usando a própria carreira do acusado como espelho de seus crimes. Quando a edição mostra, em um dos episódios, que os filmes de Allen são tomados de narrativas envolvendo homens mais velhos e meninas muito jovens, o espectador é quase obrigado a começar a reconsiderar. Mas, e se ele realmente for esse monstro?

Leaving Neverland e Allen vs Farrow têm muitas coisas em comum e a maior delas é que ambos não podem ir além dos indícios. Contudo, tanto em um quanto em outro, os indícios vão arrebentando as paredes de uma cultura de culpabilização das vítimas para se revelarem – aos olhos da era pós #MeToo – aspectos importantes da análise de um caso dessa natureza. Allen vs Farrow tem dezenas de depoimentos de pessoas próximas à família que corroboram o comportamento bizarro do cineasta, da mesma forma que Leaving Neverland tem dezenas de imagens e gravações que mostram o comportamento bizarro de Michael Jackson e seus amigos menores de idade. Se algumas vezes uma acusação de abuso é feita baseada apenas na palavra da vítima, até que ponto, em casos como esses, os indícios são irrelevantes?

Sobretudo no último episódio, a série documental tenta amplificar sua abordagem, quando o papel da mídia entra na equação tanto na forma do escudo que Allen usou para se defender nos anos 1990, como na forma da problematização tardia (e esperada) trazida à tona nos últimos quatro anos. Os astros que defenderam Allen são citados e soam como minions de um posicionamento empoeirado; os astros que começaram a se colocar como apoiadores de Dylan também aparecem, mas com 20 anos de atraso, para dar a ela a validação da qual ela não deveria necessitar para ser ouvida.

Nesse mesmo último episódio, até mesmo as acusações do único filho que ficou contra Mia e Dylan foram abordadas e devidamente derrubadas por Ronan Farrow, um de seus irmãos, jornalista, advogado e conhecido por ter se engajado no processo de desmascaramento de Harvey Weinsten. Estamos falando de indícios? Sim. Mas, a série procura corroborá-los o tempo todo com partes de uma investigação que foi dada como irrelevante não pelo sistema, mas pelo grande Woody Allen, o cineasta. Um exemplo disso? Em seu livro, Allen diz que o trenzinho de brinquedo que Dylan diz ter visto no sotão no dia do abuso sexual nunca existiu. O documentário então gruda na tela todos os documentos que provam que o trenzinho não só existiu como foi mencionado pelos investigadores que visitaram o sotão. Isso prova que o abuso aconteceu? Não. Ainda são apenas indícios, mas que se acumulam e nos forçam a não ignorá-los.

Crimes reais?

Qualquer busca na internet pode levar um leitor a encontrar uma quantidade absurda de séries documentais que destrincham crimes famosos. O gênero começou a dar seus passos lá atrás, quando o espetacular Paradise Lost (1996) ganhou sequências e virou uma espécie de série documental cinematográfica. Porém, de fato, o impulso definitivo foi dado por Making a Murderer (2015), que revolucionou o mercado ao se dividir em episódios e ter, inclusive, mais de uma temporada. Dali em diante, a televisão – e sobretudo os streamings – descobriu um novo filão, que funcionava como um híbrido entre jornalismo e dramaturgia, onde cada final de episódio tem um gancho, os vilões e mocinhos são bem definidos, mas com um detalhe partilhado por todos: você já sabe qual é o final.

Talvez o problema de Allen vs Farrow seja justamente a natureza excessivamente dramática de sua construção, uma vez que, para atender à porção jornalística desse híbrido contemporâneo, falta espaço para o outro lado, para a contraparte da questão. O documentário se esforça para manter o direito de usar esse título, apresentando especialistas, autoridades, documentos; e até jornalistas célebres como Maureen Orth, autora do livro em que se baseou American Crime Story: The Assassination of Gianni Versace e também do primeiro artigo da época que ousou questionar a soberania midiática de Woody Allen. A defesa do diretor está presente por meio de trechos narrados de sua autobiografia e em inúmeras entrevistas dadas para a televisão. É curioso notar, entretanto, que a recusa em se pronunciar na produção talvez tenha sido sua melhor estratégia. Allen vs Farrow foi um torpedo na reputação do cineasta, mas acusado de ser descaradamente parcial, pode não ter a mesma força.

Enfim, o último filme do cineasta nos Estados Unidos foi engavetado pela Amazon, mas a Europa garantiu a ele US$ 22 milhões em bilheteria. Allen vs Farrow termina nos informando que o diretor se prepara para seu próximo longa, que será todo produzido e rodado também em terras estrangeiras. A Europa pode ter seu novo grande ídolo. É bem possível que, se Allen abrisse uma conta no Twitter, ele se tornasse um dos nomes mais seguidos da rede. Afinal de contas, como foi dito no início deste texto, O.J. Simpson está por lá, falando de futebol e golf, com quase um milhão de seguidores para aplaudi-lo.

Nota do Crítico
Ótimo
Allen vs Farrow
Encerrada (2021-2021)
Allen vs Farrow
Encerrada (2021-2021)

Criado por: Kirby Dick e Amy Ziering

Duração: 1 temporada

Onde assistir:
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