La Casa de Papel, da Netflix

Créditos da imagem: La Casa de Papel/Netflix/Divulgação

Séries e TV

Artigo

Por que igualar o streaming com a TV a cabo não faz sentido

Plataformas digitais foram criadas para resolver problemas do modelo antigo. Nostalgia pela comodidade só complica solução de complicações inéditas

25.11.2019, às 18H49.

A década está terminando e a televisão começará 2020 em um lugar muito diferente de onde estava em 2010. No espaço de alguns anos, plataformas de streaming passaram a oferecer uma segunda chance para séries, depois começaram a produzir suas próprias e também expandiram aos filmes, documentários, reality shows e qualquer outro tipo de conteúdo audiovisual. Como em toda mudança de larga escala, quem antes estava estabelecido agora precisa correr atrás, e assim a WarnerMedia, NBC, Disney e incontáveis outras empresas investiram em criar serviços próprios. Grande parte do público, por sua vez, ainda não quer se adaptar aos novos tempos.

Com o anúncio de tantas plataformas diferentes, é bem comum ver pelas redes sociais publicações comparando essa variedade com a de um pacote de TV a cabo, com reclamações saudosistas sobre como modelo antigo funcionava melhor por incluir tudo em um único preço. Normalmente, tabelas mostrando “quanto custaria assinar mensalmente todos os serviços” são repassadas junto com as reclamações. A discussão quer pintar a “avalanche” de streaming como negativa, mas revela muitas inconsistências.

TV a cabo é cara, inflexível e burocrática

Qual foi o seu último contato com uma prestadora de serviços? Assinar unicamente televisão é um inferno de burocracia, já que as operadoras querem empurrar seus outros produtos, como internet ou até mesmo linha fixa de telefone (mesmo no ano de 2019). Assim, a dor de cabeça marca o primeiro contato e define toda a relação que o cliente tem com o seu entretenimento. E não é como se os valores justificassem o estresse. Com base nos preços da cidade de São Paulo*, uma assinatura de TV a cabo começa entre R$70-R$90 mensais, tanto sozinhos ou parte de combos. A grande jogada é que são os famosos pacotes básicos que trazem poucas opções canais. As propagandas inflam o peito com números como “40 canais HD”, mas as diferenças com a televisão aberta são contáveis nos dedos. Quer ver séries e filmes? Com sorte, dois ou três canais - como Universal e Canal Brasil - vão te servir.

Mesmo que o espectador se contente com o pouco, a televisão é fundamentalmente inflexível por seguir o modelo em que sempre operou. Isso significa se programar para ver um episódio de seriado no horário que vai ao ar, e torcer para pegar uma reprise caso o perca. Com a rotina agitada é cada vez mais difícil sequer ficar em casa, muito menos para ver TV em horários determinados. As poucas séries que ainda conseguem prender o público nessa abordagem ganha o rótulo de “séries-evento”, como Game of Thrones e The Walking Dead, mas essas são poucas e cada vez menos frequentes.

Game of Thrones, da HBO

Game of Thrones foi a última grande série-evento da TV a cabo, já que The Walking Dead despenca mais e mais em audiência a cada episódio.

Game of Thrones/HBO/Divulgação

Ironicamente, a TV paga reconhece parte de seus problemas e tenta criar soluções. Entendendo que o espectador precisa encaixar o lazer no tempo livre, as próprias emissoras passaram a investir em serviços on demand para disponibilizar sua programação para os assinantes - mas as plataformas costumam ser segunda prioridade, com baixa manutenção e atualizações. Decodificadores modernos vêm com DVR, para programar gravações de conteúdo, mas não só a função costuma custar um valor adicional como também é cheia de problemas, seja de picotar os seriados ou de sequer gravá-los.

Caso você se canse de tentar adaptar sua rotina ao entretenimento, o próprio cancelamento é um inferno burocrático por si só. O ReclameAqui, por exemplo, aponta que só entre janeiro e julho de 2019 foram registradas mais de 75 mil reclamações contra a Net, Claro e Sky - sem sequer contar Oi e Vivo, que com certeza aumentaria este número. As empresas também não respondem nenhuma das publicações. A partir disso, quatro entre cada dez reclamantes cita dificuldades na hora do cancelamento. Em resumo, a TV a cabo é marcada por combos indesejáveis para adquirir um mínimo de conteúdo, pelo qual você terá que se adaptar para consumir no tempo das emissoras, e depois se complicar com diferentes processos, multas e dores de cabeça caso desista no meio do caminho.

Não é a toa que o digital resolva todos esses problemas. Afinal, as plataformas foram construídas em cima da ideia de modernização.

O streaming é mais barato e acessível

Mesmo o plano mais caro da Netflix (atualmente R$45,90) custa metade do valor de um pacote básico de televisão a cabo. Outros, como a Amazon Prime Video, saem por R$9,90 como parte do Amazon Prime. Looke, Google Play e outros permitem alugueis e compra a la carte, sem vínculo mensal. E qualquer um desses já dá acesso à mais conteúdo do que TV por assinatura, seja pelo tamanho dos catálogos ou pela constante atualização. O cancelamento também costuma não dar dor de cabeça: a maioria permite o encerramento da conta com apenas alguns cliques.

As horas do dia continuam as mesmas, e a rotina não fica mais leve, mas o fato dos serviços estarem disponíveis nos celulares e computadores ajuda a contornar isso. Uma volta para casa de metrô ou ônibus, por exemplo, pode facilmente acomodar um filme ou episódio de série. Para facilitar, os dispositivos são amplamente presentes no cotidiano brasileiro: segundo a Nielsen, 64% da população do Brasil tem smartphone, e 39% utilizar o aparelho para entretenimento.

O que faz então as pessoas optarem pelo modelo datado? Simples: o medo de ficar de fora. A suposta desvalorização do streaming parte inteiramente de uma pressão social em ficar a parte de tudo.

Você não precisa assistir tudo (ao mesmo tempo)

A Netflix aperfeiçoou a ideia que o lucro está em criar sua própria programação, ao invés de licenciar a dos outros. É a partir disso que agora toda empresa quer ter seu próprio serviço. O público, do lado oposto dessa equação, fica encarregado de filtrar uma verdadeira enchente de seriados, filmes, documentários para encontrar o que vale ser assistido. O processo fica mais evidente agora mas, na realidade, sempre foi assim. É vê-lo sendo desempenhado, com fãs discutindo a Série do Momento nas redes sociais, que cria uma necessidade de estar a par de toda discussão. Não deveria ser assim. Esse consumo desenfreado só serve para criar relações passageiras com o entretenimento, e mesmo o nível da conversa só chega em algum lugar de valor quando os espectadores têm tempo para digerir o que assistiram.

O medo de “ficar para trás” não deveria minar a variedade de conteúdo. Opções servem justamente para garantir que cada segmento do público encontre algo de interesse: além da Netflix e Amazon Prime Video, há opções específicas, como o Á La Carte do cinema Petra Belas Artes, focado em cinema cult, ou o americano Shudder da AMC, inteiramente dedicado aos horror. Pedir que tudo seja reunido na mesma casa é irrealista e limitador.

Stranger Things, da Netflix

Stranger Things é legal, mas você pode assistir no seu próprio tempo

Stranger Things/Netflix/Divulgação

Ao invés disso faz muito mais sentido escolher de acordo com o que chama a atenção. Em um mês é possível assinar a Netflix para ver algo como Stranger Things ou O Irlandês, e também um secundário, como a Prime Video para maratonar The Office e Seinfeld. Passado isso, nada impede o cancelamento de um deles para permitir a assinatura de outro que melhor atenda suas necessidades no momento. Comodidade é bom, mas não pode definir uma indústria.

O streaming é perfeito? Bem longe disso

As plataformas digitais resolvem muitos dos problemas da antiga TV ao mesmo tempo em que trazem inúmeras dificuldades inéditas. O ponto é que vale mais a pena concentrar as energias em pedir que as empresas lidem com elas, ao invés de reclamar da variedade de opções.

Os catálogos gigantes, por exemplo, pecam na curadoria e colocam muita coisa de baixa qualidade só para crescer. Muito dos players deixam muito a desejar, como a instabilidade da HBO Go (lembra da época de Game of Thrones?), ou a má otimização do Globoplay em diversos dispositivos**, com interfaces confusas, problemas de reprodução, péssimo optimização para a média de internet local e falta de métodos de pagamento. Esses são só alguns dos problemas técnicos, mas a transição para o meio digital também vêm com uma série de questões existenciais. O lançamento do Disney+ veio com algumas alterações sérias no conteúdo, como mais uma modificação na cena de Han Solo vs. Greedo, ou no formato de Os Simpsons que, ao ter as primeiras temporadas no padrão 16:9 ao invés do original 4:3, perdeu várias piadas visuais. Mesmo a preservação digital deve ser colocada em pauta: se você comprar um filme no Google Play ou no Looke e a empresa removê-lo do catálogo depois - algo que acontece com frequência preocupante, por diversos motivos -, o que acontece com sua compra? É removida da biblioteca? Essas questões são amplamentes discutidas pelos colecionadores de mídia física, que sabem o valor de não depender unicamente de serviços digitais - e também as dores de cabeça de serem entusiastas de hobbies mal administrados.

Exemplo de piada visual perdida pela mudança de formato de Os Simpsons no Disney+

O ponto é que a energia do público deveria estar concentrada em cobrar as empresas para que essas dificuldades sejam resolvidas. Se novos serviços de streaming querem dar certo no Brasil, o mínimo exigido é que entendam as condições do público local e não entreguem produtos meia-boca. Concorrência é o que estimula que cada plataforma tente o seu melhor, seja em exclusivos ou produções originais de melhor qualidade. O consumidor tem o poder de voto nessa briga, e reclamar da variedade de opções só serve ao interesse das corporações que já estão estabelecidas. Quando se trata de entretenimento, o desejo surreal da comodidade é caminho certeiro para monopólios.

*Comparação feita com valores dos pacotes básicos da Claro TV, Vivo TV, SKY TV e Net

** Entramos em contato com a HBO e a Globo para questionar sobre as várias reclamações sobre instabilidade e otimização de seus serviços. As empresas não responderam a tempo da publicação. Atualizaremos assim que recebermos um posicionamento!

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