[Cuidado com spoilers sobre o episódio da 7ª temporada de Black Mirror no texto abaixo]
Quando U.S.S Callister estreou, muitos fãs de Star Trek correram para dizer que o primeiro capítulo da quarta temporada de Black Mirror era uma das melhores histórias de Jornada nas Estrelas fora da obra criada por Gene Roddenberry. E eles não estavam exagerando. A produção da Netflix usava o conceito das missões de Kirk, Spock e cia para - no melhor estilo Black Mirror - subverter a ideia da tripulação da Enterprise e sua missão de ir aonde ninguém jamais esteve e falar sobre comportamento tóxico e tecnologia.
Paródias de Star Trek não são novidade. O excelente Heróis Fora de Órbita já fazia isso muito bem ao colocar atores de uma série de ficção no meio da ação quando alienígenas acreditam que eles são seus personagens. The Orville, criada e estrelada por Seth MacFarlane, estreou no mesmo ano que U.S.S. Callister e também conquistou os Trekkers que não ficaram muito felizes com Star Trek: Discovery, também de 2017. Até a própria franquia aproveitou do humor para criar a animação Lower Decks, um dos grandes sucessos recentes entre os apaixonados por Trek.
Qual a história do primeiro U.S.S. Callister em Black Mirror?
U.S.S. Callister pode ser visto como uma mistura de todas essas produções. O episódio conta a história de Robert Daly (Jesse Plemons), o gênio por trás do Infinity, um videogame de universo aberto onde cada jogador pode ter seu próprio personagem. Isolado na empresa, com o CEO James Watson (Jimmi Simpson) ganhando toda a atenção, Daly criou uma versão própria e isolada do game, com um mod de Space Fleet, seu seriado de ficção científica favorito. O aparente gente boa se mostra um grande tirano e abusador, quando rouba o DNA de seus companheiros de trabalho para recriá-los no ambiente virtual, podendo assim controlá-los e torturá-los como quiser lá dentro. Tudo muda com a chegada de Nanette Cole (Cristin Miliotti), nova funcionária da Callister - empresa que leva o nome da nave de Space Fleet - e admiradora de Daly.
Com seu comportamento obsessivo, Robert logo consegue copiar Nanette para o jogo e ela se junta ao grupo que forma a ponte de comando da U.S.S. Callister. Ao longo do episódio, ela arma um plano para escapar de Daly por um “buraco de minhoca” que aparece no espaço, causado por uma atualização no jogo. Eles conseguem se comunicar com a versão real de Nanette e ela invade a casa de Robert enquanto ele está online - em um transe causado pela conexão -, roubando as provas de DNA. Ao escaparem pela falha no jogo, eles deixam Daly isolado na antiga versão que se apaga com a chegada da nova. O grupo agora vive no novo mundo aberto de Infinity e podem viver explorando o espaço.
A grande sacada do episódio da quarta temporada é pegar o conceito de unidade de Star Trek, de uma Federação que uniu planetas e de uma Frota Estelar em missão de paz e conhecimento para criar essa trama de abuso e toxicidade no trabalho. James T. Kirk (William Shatner) era o símbolo do caubói americano no espaço, o galã destemido, mas que sempre foi justo com sua tripulação e colocava o bem de muitos à frente do de apenas um, como disse Spock (Leonard Nimoy) em A Ira de Khan. Na busca por aceitação, Daly cria em sua “versão Capitão da Callister” um personagem que é apenas baseado na vaidade do garanhão que salva o dia. Todos na tripulação devem trabalhar para o ego dele e para ele se sentir o comandante que não consegue ser fora do game. Esse é o grande erro de Daly e de muitos fãs de histórias populares assim: não entender a verdade sobre seus personagens favoritos. Seu comportamento nunca daria certo na realidade de Star Trek (ou no caso, Space Fleet), assim como não funciona em seu videogame, já que é o sentimento de unidade, seja dentro da Enterprise e da Callister ou na forma de imaginar o universo, que reside a grande força daqueles personagens.
Qual a história da continuação de U.S.S. Callister de Black Mirror?
Mais de sete anos e alguns episódios de Black Mirror depois, a história retorna na continuação U.S.S. Callister: Into Infinity. Trazendo de volta praticamente todo o elenco do capítulo de 2017, a trama mostra o que aconteceu após a morte de Robert Daly no final da história anterior e dá continuidade na jornada dos tripulantes, agora comandados por Nanette.
As referências ao mundo de Star Trek ainda existem, começando pelo nome Into Infinity, que segue a linha do segundo filme dirigido por J.J. Abrams, que em inglês se chama Into Darkness - até a fonte usada no letreiro com o nome do episódio é igual a do filme. Novos planetas, novos uniformes - agora mais próximos dos usados em Star Trek: Enterprise do que da série clássica -, e um encontro com o “criador” azem boas alusões às histórias criadas por Gene Roddenberry. No entanto, o grande foco do novo episódio de U.S.S. Callister, principalmente na ação, o aproxima diretamente de games como Roblox, com jogadores criando seus personagens e armas para viver nesse universo, explorando, criando e destruindo conexões com outros jogadores.
Vivendo por conta própria dentro do Infinity, a tripulação precisa de créditos para conseguir viajar pelo espaço, comprar munição e se alimentar. Como eles não são jogadores cadastrados, eles não podem comprar esses créditos e precisam roubar de outros para ter sucesso. Os personagens sem tags de identificação e que sangram quando machucados começam a chamar a atenção dos outros jogadores do Infinity, que logo entram em contato com a empresa para reclamar. Isso chama a atenção da Nanette do mundo real, que passa a investigar a situação após a morte de Daly e descobre sua própria imagem dentro do jogo. Paralelo a isso, James Walton, o CEO, está enfrentando um jornalista que está em busca da verdade por trás das reclamações, da morte de Robert e seu possível uso da tecnologia proibida de clonagem virtual. Nanette e Walton se juntam para entrar no Infinty - a atuação de Jimmi Simpson é hilária! - e descobrir o que está acontecendo.
A continuação explora mais desse universo virtual, vemos outros jogadores e suas skins - iguais de jogos como Fortnite e Free Fire -, naves e situações explorando essa mistura do comportamento dentro da ficção virtual com a dos usuário fora dali. Entretanto, o episódio perde a oportunidade de ir mais afundo na discussão ao trazer de volta Robert Daly como um clone digital que está trabalhando no coração do jogo para continuar criando novos mundos. A versão de Daly é a mesma que Walton conheceu no passado (vemos em um flashback) e é impressionante como Jesse Plemons parece realmente muito mais novo do que sua versão de 2017. O trabalho de maquiagem, misturado com a mudança na forma física do ator nos últimos anos, torna totalmente crível estarmos vendo um Robert jovem.
O encontro dele e Nanette gera uma daquelas ótimas discussões de ficção científica sobre salvar a si próprio - a versão real dela está em coma após um acidente e ele pode transferir sua versão virtual para lá - ou só salvar a tripulação. Ao contrário do que Robert faria como capitão no primeiro episódio, Nanette escolhe pelos companheiros, mostrando que ela sim está mais próxima dos comandantes de histórias como as de Star Trek do que ele, que sempre foi o fã, conseguiria. A versão jovem dele quase engana Nanette com seu discurso vitimizado de que foi Walton quem o fez ficar daquela forma, mas ela rapidamente enxerga que o lado tóxico de Bob sempre esteve presente.
U.S.S. Callister pode ganhar um terceiro episódio?
O novo episódio de U.S.S. Callister se encerra com um novo twist e toda a tripulação vivendo dentro da cabeça de Nanette, enquanto ela consegue escapar para seu corpo real. Virtual e realidade se fundem em um novo corpo e dividem as atividades do dia-a-dia juntos. O senso de liberdade, no entanto, pode ter um lado negativo se pensarmos que, no fim, este ainda é o plano de Daly e todos ali ainda seguem presos às vontades de um controle maior: Nanette.
Por enquanto, eles ainda estão convivendo bem, mas a pista de que ela não está se esforçando tanto assim para resolver a situação deles, pode dar o caminho para um terceiro episódio.
Black Mirror é uma antologia que retrata cenários distópicos baseados no uso da tecnologia. A série estreou no canal britânico Channel 4 em 2011 e teve duas temporadas, além de um especial de Natal. Em seguida, foi para a Netflix, que produziu as quatro temporadas seguintes.
Cada episódio é protagonizado por personagens diferentes. O elenco da série já contou com Bryce Dallas Howard, Miley Cyrus, Hayley Atwell, Jesse Plemons, Daniel Kaluuya, Jon Hamm, Letitia Wright, Anthony Mackie, Wyatt Russell, Mackenzie Davis, Jodie Whittaker e mais.
No sétimo ano, teremos Rashida Jones, Chris O'Dowd, Tracee Ellis Ross, Rosy McEwen, Siena Kelly, Paul Giamatti, Patsy Ferran, Peter Capaldi, Lewis Gribben, Will Poulter, Asim Chaudhry, Emma Corrin, Issa Rae, Awkwafina, Christin Millioti e Jimmi Simpson.
Os novos episódios já estão disponíveis na Netflix.
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