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Crítica

American Horror Story: Cult | Crítica

Sétima temporada abre mão dos elementos sobrenaturais para focar nos maiores perigos contemporâneos: a vaidade e o medo

18.11.2017, às 07H06.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H24

Em novembro de 2016, em meio a toda a loucura provocada pela disputa entre Hillary e Trump pela presidência dos EUA, o YouTube começou a ser tomado por vídeos amadores que mostravam pessoas fantasiadas de palhaços pelas ruas, amedrontando e assustando moradores de cidades pequenas. A polícia chegou a atentar para o “fenômeno” depois que alguns casos chamaram a atenção pelo seu teor quase terrorista. A sociedade estava reagindo de algum jeito e olhando para trás na história, períodos de grandes transformações sociopolíticas também são incubadoras de organizações extremistas. A vitória de Trump era o pontapé para a criação de um novo culto.

Ryan Murphy, criador do série, declarou que os palhaços eram uma das inspirações para a história da temporada e que Charles Manson, seria a outra. Os assuntos são completamente convergentes: os palhaços representam o registro contemporâneo visual e Manson representa o impacto de um culto dentro da cultura pop. Nos anos 60, ele liderou um grupo que se autoproclamava hippie e que espalhou terror e pânico assassinando pessoas em Los Angeles sob a justificativa de que preparavam o terreno para uma guerra e para a reconfiguração do mundo. Nesse mundo os negros seriam subjugados, homossexuais banidos e mulheres submetidas aos homens, só fazendo refeições depois dos cães, inclusive. Qualquer semelhança com a tomada absurda de reacionarismo político e social não é mera coincidência.

Culto Bipartidário

Cult começa exatamente no momento em que a vitória de Donald Trump é declarada. O mundo estupefato é representado pela reação da personagem de Sarah Paulson. Ally é uma mulher bem-sucedida, gay, casada com uma chef e juntas elas criam seu filho e simbolizam o resultado de uma América que fora salva por valores supostamente democratas. Elas idolatram Obama e celebram conquistas e vitórias que são importantes para minorias oprimidas no curso da história. Porém, a maneira hiper dramática com a qual essa reação é exposta tem um propósito: Murphy não quer perder de vista que extremismo não se combate com mais intolerância e há um perigo rondando aquela casa que não tem raízes na vitória de Trump.

Do outro lado está Kai, vivido por um Evan Peters irrepreensível e que começa o enredo não sendo mais que um jovem cheio de ideias distorcidas sobre o mundo. Cabelo colorido, filho da era digital, do armamento, da classe média fingida e dissimulada... Poderia ser qualquer um desses jovens que vão para as redes sociais defender opiniões reacionárias, questionar o valor de leis de proteção ao negro, aos gays, às mulheres, porque “se todos são iguais ninguém devia receber benefícios por ser diferente”. Kai é o tipo que simpatiza pela causa nazista, mas quando indagado sempre diz que “a suástica, o nazismo, são muito mais que genocídio, são uma ideologia protecionista e legítima”. Quando Trump vence ele ganha a chance de exercer sua oratória e garantir sua oportunidade de ser especial.

A dramaturgia da temporada se constrói de forma extremamente complexa. Kai convence os seus seguidores de que o mundo precisa temer mais e mais, para que passe a aceitar ser liderado por quem realmente está disposto a fazer “uma limpeza”. E isso é coerente com a realidade de formas enervantes, porque a ascensão de políticos de extrema-direita, que defendem muros cercando fronteiras, repressão de gênero e a matança indiscriminada de bandidos, só foi possível porque a sociedade vive um profundo momento de insegurança e foi convencida de que “os valores precisam ser recuperados para que a família se sustente”. Por isso, Kai organiza um culto e instaura o medo, matando e mutilando, até que todos temam tanto, que aceitem qualquer tipo de ajuda.

Ally já é toda feita de medos e fobias. Dominada por eles, ela segue por metade da temporada sendo um mero joguete nas mãos daqueles que a deviam proteger. Dedicada ao papel, Paulson tenta se esquivar da semelhança de trajetória que já vivera em Asylum e Coven, em que suas personagens também eram muito humilhadas antes de buscarem vingança. E ela consegue. A partir do ponto em que o culto é revelado e Ally entende tudo que lhe foi feito, a temporada entra numa espiral de tensões movidas pela vingança. Além disso, os fracassos políticos de Kai pioram seus rompantes egomaníacos e assim como aconteceu com David Koresh, Jim Jones, Manson e tantos líderes de cultos que atravessaram o tempo (e que foram devidamente ilustrados nos episódios), seu propósito passa a ser apenas o de se tornar um “ídolo”.

Yes, We Can

A temporada tem dois protagonistas: Sarah Paulson e Evan Peters. Curiosamente, também os únicos dois membros do elenco original a participar de todos os anos da série até aqui. American Horror Story vem passando por uma evidente descaracterização de elenco e algumas perdas são sentidas. Por ter nascido antologicamente, funcionando quase como uma trupe de teatro, a série tinha no seu cast um fator predominante de familiaridade. Roanoke ainda tinha Kathy Bates, Angela Bassett, Lily Rabe e até Lady Gaga, que também virou uma espécie de ícone da série. Cult é a temporada com mais rostos novos e por isso mesmo, a que mais soa distanciada da atmosfera original.

Os pontos fracos estão justamente nas atuações de um elenco despreparado para enfrentar o peso da série. A ideia do homossexual reacionário não é bem defendida por Billy EichnerAlison Pill tem seu nome nos créditos de abertura, mas Adina Porter não tem e faz um trabalho muito melhor. Isso sem falar em Billie Lourd, que é apática, monocórdia e não consegue esquecer sua personagem em Scream Queens. O desnível é problemático e prejudica a soberania do programa no que diz respeito a atuações, algo que nunca foi um problema antes. Além disso, os tropeços de texto e edição no episódio focado em Manson (logo ele), esfriaram a expectativa da finale. Porém, essa temporada tem o ótimo episódio focado em Valerie Solanas, uma líder feminina que redime a série de um discurso antidireita e ainda faz aquilo que a série tem de mais charmoso: sua capacidade de brincar com elementos da cultura pop.

Como estamos falando de Ryan Murphy e de seu profundo engajamento em questões de gênero e de defesa dos direitos das minorias (ele tem até uma fundação que prioriza mulheres e afro-americanos na direção, produção e autoria de trabalhos para a TV), o final da temporada não poderia deixar de encerrar os ponderamentos sobre o papel da mulher na sociedade. O discurso de Kai é velho, imbecil, nojento e cheio de sabedoria fingida. Os que o seguem são gatinhos assustados que precisam de alguém que lhes dê a mão. Ally sepulta esse terror promovido pela ignorância, mas o grande pesar está na hora de desligar a TV. Sem monstros, criaturas e fantasmas, American Horror Story fez sua temporada mais assustadora. O perigo, vejam só, somos nós.

Nota do Crítico
Ótimo

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