Primeiras impressões: 1899 luta para ser Dark sem ser Dark
Série dos criadores de um dos grandes sucessos da Netflix se debate para ser interessante sem ser repetitiva, mas tropeça no processo
Créditos da imagem: Netflix/Divulgação
No ano de 2008, o showrunner Vince Gilligan lançava discretamente aquela que seria uma das séries mais adoradas do mercado mundial: Breaking Bad. Hoje, 14 anos depois, Vince ainda está envolvido com o universo da série, que terminou em 2013. Ele lançou um bom spin-off - que acabou esquecido na maioria do tempo; e um filme que deveria ser um marco para os fãs - e acabou igualmente ignorado pela grande mídia e pelas premiações. Viver de um sucesso pode ser muito lucrativo, mas repeti-lo já é uma outra história.
Jantje Friese e Baran bo Odar, criadores de Dark, não parecem querer viver do universo da série, não planejaram spin-offs e nem derivados. Mas, paira sobre eles a responsabilidade de sustentar a reputação de inteligência e sagacidade conquistada depois que a série da Netflix se popularizou. Dark era tão bem organizada, usava tão bem os elementos científicos que trouxe para sustentar a história, que era inevitável atribuir aos dois roteiristas o legado de uma produção que encerrou seu caminho sem falhas.
Depois que um showrunner faz sucesso com um gênero, dificilmente ele vai escapar da pressão para continuar explorando a mesma área. Em muitos casos, aliás, é isso mesmo que eles querem. Jantje e Baran parecem confortáveis em lidar com esse cenário, sobretudo porque diante do prestígio de sua primeira criação na plataforma, as portas orçamentárias se escancararam. A nova investida narrativa da dupla não só segue o fluxo do que os tornou conhecidos, como também apresenta um espetáculo visual.
1899 parece esconder tantos segredos que até descrever do que ela se trata parece arriscado. Podemos dizer que tudo começa quando o navio Kerberos (um nome que no mundo real representa um sistema de autenticação de usuários em uma rede) se depara, no meio do oceano, com um mistério: da neblina surge o navio Prometheus (que tem o mesmo nome do Deus grego que deu aos homens a superioridade existencial perante os outros animais). O problema é que o Prometheus havia desaparecido há alguns meses e quando reaparece na água, está como um navio fantasma, velho e completamente vazio.
Com isso, começa o dilema do capitão Larsen (Andreas Pietschmann): o que fazer diante do navio que acabaram de encontrar? Entrar? Ignorar? Reportar? Ao mesmo tempo, há uma série de tensões ocorrendo dentro do Kerberos, envolvendo os passageiros das duas classes que dividiam o navio. Entre eles estão Maura (Emily Beecham), que funciona como a costura entre os acontecimentos; Krester (Lucas Lynggard), um passageiro da classe operária com uma família hiper religiosa; Ling (Isabella Wei), que impressiona com seus trajes japoneses tradicionais; Angel (Miguel Bernardeau), que tem uma relação intensa e proibida com outro dos passageiros; Lucien (Jonas Bloquet), que está na lua-de-mel de um casamento arranjado; além de um personagem que se torna uma presença inesperada e perturbadora no navio.
Triângulos
Apesar de ser possível reconhecer quem são os personagens que terão potencial para continuar na trama, 1899 é uma série que mantém nossas expectativas em suspenso. É realmente curioso como os roteiros não estabelecem imediatamente quem são os nossos guias por esse mistério, uma vez que a lista de personagens é muito mais extensa do que o comum. Esse é um navio lotado, e o objetivo dos criadores é ser imensamente fiel à ideia de ter imigrantes europeus partindo para os EUA. Inglês, francês, alemão, espanhol, chinês, português... Há uma bela pluralidade de idiomas na série, o que dá credibilidade e substância ao cenário da história.
A teoria de que a série falaria sobre o Triângulo das Bermudas surgiu depois da forma geométrica ter aparecido em grande parte do material promocional. No entanto, nem os criadores e nem a divulgação oficial foram responsáveis por confirmar esse ponto. O mistério do navio fantasma que surge no oceano é claramente uma provocação e os produtores estão cientes disso, do contrário o triângulo não teria sido escolhido como “artefato”. Embora haja uma atenção notória a entender quem são os personagens da série, é evidente que o quebra-cabeça é a estrela da produção.
Aqui chegamos ao ponto sensível... Inebriados pela ideia de contar um novo mistério, os criadores de 1899 talvez tenham pensado que acelerar a narrativa pudesse antecipar a popularidade que Dark demorou para conseguir. Mesmo com um tratamento visual incrível e personagens com potencial de desenvolvimento, são tantos elementos sendo jogados um por cima do outro, que a sensação é de que você pegou uma história pela metade, depois que muita água já passou por baixo da ponte – ou melhor, do navio.
As relações pessoais são sempre tensas, o drama é elevadíssimo e fica difícil saber para onde vamos crescer se tudo já começa lá em cima. Elementos sobrenaturais surgem quase imediatamente, frases de efeito rasgam as cenas e com isso a naturalidade vai se esvaziando progressivamente. Não dá tempo de torcer, não dá tempo de processar e nem de respirar entre as novas revelações. O que poderia ser uma viagem corriqueira que pouco a pouco se transforma num pesadelo, já começa no meio do terror. Não é necessariamente um erro, mas uma perigosa escolha criativa.
Há sequências em 1899 que são absolutamente deslumbrantes e isso diz muito sobre o que a série pode conquistar diante de uma atenção especial à progressão dos acontecimentos. O mistério é parte da vida das pessoas, mas aqueles que são só mistério se tornam cansativos. Nem tudo vale a pena desvendar, sobretudo se isso não afeta quem somos e para onde vamos. A viagem desses personagens não pode ser, enfim, só uma viagem.