Reino do Amanhã (DC Comics)

Créditos da imagem: DC Comics

HQ/Livros

Reino do Amanhã está de volta, e mais revelante do que nunca

Na primeira edição da coluna Virando a Página, examinamos o legado do épico da DC Comics

Omelete
8 min de leitura
11.08.2024, às 10H00.
Atualizada em 11.08.2024, ÀS 10H41

Virando a Página é a coluna quinzenal de quadrinhos do Omelete, falando de lançamentos de HQs, histórias clássicas e descobertas da Marvel, DC e além. Para facilitar sua vida, juntamos todas as HQs citadas no texto num só link (as de hoje estão aqui).

Nenhuma continuidade alternativa dos quadrinhos da DC Comics ou Marvel está imune à exploração contínua. Qualquer Elseworld será minado com mais derivados e continuações, e aquelas que não forem verão seus elementos mais populares e bem-sucedidos transportados para a linha principal. Poucas são as exceções. Frank Miller escreveu uma sequência de O Cavaleiro das Trevas. Watchmen deixou, há muito, de ser algo intocável*. Talvez Grandes Astros Superman, de Grant Morrison, seja um exemplo de algo que permanece independente, ainda que Morrison tenha colhido sementes plantadas ali em DC Um Milhão.

*Retorne aqui daqui a algumas semanas para falarmos sobre isso!

Mas dentro dessa dinâmica, há aquelas histórias que permanecem pouco exploradas, e que mantêm seu status de ícone imaculado, ainda que, aqui e ali, um roteirista ou artista receba a bênção da editora para colocar os pés na terra santa. Um desses é, claro, Reino do Amanhã, a totêmica obra de Mark Waid e Alex Ross de 1996, que agora está mais acessível do que nunca no Brasil.

Reino do Amanhã acaba de ser relançada pela Panini no “formatinho”, apelido carinhoso para a linha “DC de Bolso”, que coloca grandes obras em pequenos tamanhos (e mais importante: pequenos preços). A graphic novel é um marco dos quadrinhos que, quase 20 anos depois, segue relevante e importante, talvez até mais do que quando foi lançada.

Ler este épico no novo formato é o que me fez pensar nisso. O formatinho foi uma ótima desculpa para fazer algo que a própria DC, durante muitos anos, temia: retornar ao Reino do Amanhã. O tamanho, porém dificulta a compreensão do fluxo de narrativa em algumas das páginas mais complexas de Ross e ainda engole algumas bolhas nas extremidades internas das páginas. A compensação desses problemas é o ótimo preço de R$ 49,90, além do material leve, prático para levar a qualquer lugar.

Reino do Amanhã (DC Comics)

 

 

REINO DO AMANHÃ: UM APOCALIPSE DE PROPORÇÕES BÍBLICAS

Situada num mundo onde, depois de um desastre que custou até a vida de Lois Lane, Superman num exílio auto-imposto, se recusa a ser chamado de Clark e não atua salvando vidas há 10 anos, Reino do Amanhã usa a narrativa bíblica do livro de Apocalipse para imaginar a Terra caminhando a largos passos para o seu fim. Enquanto os “heróis” substituindo a clássica Liga da Justiça, liderados pelo imperdoável Magog, se mostram indiferentes à vida, rápidos no matar e pouco interessados na ideia de inspirar as pessoas, um pastor cuja congregação é chamado pelo Espectro para testemunhar o fim.

Acompanhamos o reverendo Norman McCoy e Espectro, um personagem que é melhor utilizado quando situado dentro desse contexto religioso do que quando é apenas uma “força” do universo de maneira genérica, enquanto eles se tornam as duas testemunhas do Apocalipse. E se há um Messias retornando, este é o Superman. Waid identifica, corretamente, a relação intrínseca entre a criação do Superman e as fés judaica e cristã como a maneira de capturar o peso desses acontecimentos. Se tem algo que não falta na DC, são futuros distópicos em que a editora imagina Superman e outros heróis de maneira mais sombria, mas poucos são tão difíceis de engolir quanto esses. O cristianismo dá ao armagedom narrado aqui um gosto próprio, mais distinto, mais tátil. 

Trata-se justamente do mérito espiritual da história, algo efetivado pela arte de Ross, cujo mix de realismo e “isso parece pintura renascentista” nem sempre me agradou nas páginas internas dos quadrinhos (em capas e artes especiais? Aí sim), mas que faz Reino do Amanhã saltar das páginas para nosso coração. As expressões faciais perfeitamente reproduzidas, as cores desbotadas e o surrealismo de seus enquadramentos dão à HQ a sensação do épico. Aquilo parece, emocionalmente falando, realmente ser a realidade para qual os heróis, e nosso mundo, estão caminhando. Questões como conflitos geracionais, mercantilização sem fim e desastres globais são abordadas. É só olhar para nosso mundo e os paralelos aparecem. A Bíblia, e o Apocalipse em especial, se diferenciam de outros textos religiosos na gravidade que conferem ao fim dos tempos, tratando de uma perversão que afeta tanto a sociedade como um todo quanto a alma de indivíduos, e Reino do Amanhã não foge disso. Pelo contrário.

Superman, um filho enviado à Terra por um pai extraterrestre benevolente para salvar a humanidade e crescer com um casal de simples terráqueos, foi criado por dois quadrinistas judeus que, de uma forma ou de outra, colocaram suas ideias messiânicas nele. De lá pra cá, Grant Morrison e outros roteiristas se apoiaram bastante nos paralelos entre Clark Kent e Jesus Cristo, uma ideia que Zack Snyder usou e abusou em seus filmes, em especial no visual, mas Reino do Amanhã é uma das únicas histórias que vai além de sua vinda e imagina sua volta como o ressurgimento do Cordeiro narrado em Apocalipse. Mas vencer o mal não é fácil.

Passando por lutas contra um Lex Luthor ainda ativo, um Batman dado ao fascismo e uma Mulher-Maravilha sanguinária, este Superman sofre para encontrar o caminho que não cede à maldade, e o resgate de seu simbolismo, da esperança, e dos sonhos é tão importante para Waid e Ross quanto o do planeta fadado. É preciso redenção, e o principal personagem da DC, moldado a partir de um redentor, é a figura para isso

De Volta ao Reino do Amanhã (DC Comics)

 

 

O LEGADO DO REINO DO AMANHÃ

Como dá pra perceber, essa é uma daquelas histórias únicas, e de certa forma definitivas. Não à toa, tentativas da DC de voltar a essa continuidade fracassaram e são, no geral, desconhecidas. Aqui e ali, o Superman de Reino do Amanhã aparecia, e personagens ou conceitos desse mundo já passaram por coisas como Sociedade da Justiça e 52. Waid escreveu uma espécie de continuação com O Reino, que não contou com a volta de Ross depois que ele e o escritor discordaram em alguns conceitos. O mais discutido era o de Gog, um vilão concebido por Ross como um alienígena que surge do colapso do planeta Urgrund, quando acabou se dividido em dois mundos: Apokolips e Nova Gênesis.

O que nos leva à outra novidade que, em 2024, nos leva de volta a Reino do Amanhã. A melhor revista atual da DC é Batman/Superman: Os Melhores do Mundo, em que Waid está contando algumas das aventuras mais legais dos dois principais heróis da DC Comics ao lado do fenômeno artístico que é Dan Mora. Um desses arcos envolve um garoto chamado David, que chega à Terra em circunstâncias semelhantes à de Clark Kent (mas ao invés de vir do espaço e ganhar poderes, ele vem de outro universo e ganha poderes). David vira um “Robin” para Superman, mas sofre para controlar seus impulsos mais violentos, e às vezes usa força letal. 

De Volta ao Reino do Amanhã (DC Comics)

 

 

Eventualmente, ele é, novamente, levado para outro universo: Reino do Amanhã. Lá, ele encontra Gog, cuja origem e concepção seguem a ideia original de Alex Ross, e vira Magog. Waid e Mora continuam essa história levando o Batman e Superman principais para aquela sagrada continuidade, antes dos eventos da HQ original, e através de Gog e David/Magog, complicam e aprofundam ainda mais as circunstâncias que levaram Superman ao autoexílio, à queda dos heróis clássicos e ao surgimento de uma nova geração mais violenta.

Entrar em mais detalhes é roubar essa história de alguns de seus melhores momentos. Você pode ler o surgimento de David em Batman/Superman: Os Melhores do Mundo Vol. 7 a Vol. 11, e tudo na continuidade de Reino do Amanhã nos Vol. 18 a 21*. Detalhes da HQ clássica como a violência de Magog contra o Coringa, e até perguntas que, para mim, precisavam ser respondidas (por que os heróis desse mundo já pareciam tão tristes antes mesmo do Superman se isolar?) são enfim abordadas. 

*O volume 21 chega ao Brasil na segunda quinzena de agosto.

Virando a Página

 

 

Waid (e Ross) seriam os únicos quadrinistas com a confiança e autorização para fazer algo do tipo, mas ainda assim, os riscos de voltar a Reino do Amanhã são gigantescos. Sendo assim, o feito de Waid em Melhores do Mundo é impressionante: ele não só faz jus ao legado de uma de suas maiores obras, como também honra os desejos não realizados de Ross para O Reino e, acima de tudo, complementa o quadrinho de 1996. Reino do Amanhã fica melhor por conta da existência deste arco em Batman/Superman. Dá pra chamar de milagre? Nada mais justo para uma história bíblica.

RESPONDENDO VOCÊS:  Você pode participar da coluna mandando sua pergunta sobre qualquer tema relacionado a quadrinhos no nosso email: virando.pagina@omeletecompany.com.

Leo Assarito: Quando você leu pela primeira vez, qual foi sua sensação/reação? Tendo a temática da história em perspectiva, somada aos 20 e poucos anos do lançamento original, qual você diria que foi o impacto de Reino do Amanhã na cultura pop, em específico nas histórias (quadrinhos, animação, cinema, etc) de super-heróis?

Jacobs: Léo, eu confesso que não lembro 100%. Lembro de ter achado ótimo, e ficado impactado com a temática bíblica, que pra mim faz uma diferença enorme em distanciar Reino do Amanhã de histórias distópicas genéricas. Fica tudo menos genérico. 

Mas eu li Reino do Amanhã naquela onda inicial de “preciso ler X HQs clássicas.” Estava tentando matar todos os títulos obrigatórios da DC. A Piada Mortal, Cavaleiro das Trevas, Grandes Astros Superman, Watchmen e assim vai. Em outras palavras, eu não tinha o paladar experiente que tenho hoje para quadrinhos, e por isso essa releitura recente foi até mais impactante.

Curiosamente, acho que o legado que ficou de Reino do Amanhã cresceu ainda mais por conta da onda de realismo sombrio que varreu super-heróis nos últimos 20 anos, incluindo no cinema e TV. Ele não influenciou muito essas adaptações, mas elas deixam a temática de retorno à inspiração e esperança da história cada mais relevante.

Na próxima edição: o novo Universo Ultimate da Marvel.

 

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