Piolhices e Afins
Peter Parker & Fausto (ou: O Mefisto anda tomando MGH)?
Peter Parker & Fausto
(ou: O Mefisto anda tomando MGH)?
Em 1806, o cientista, filósofo, botânico e, principalmente, escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe escreveu e publicou a primeira parte de seu poema Fausto, um marco na literatura alemã. A segunda parte, inacabada, chegouàs livrarias 25 anos depois, em 1833, pouco antes da morte do escritor. Faustoé um poema épico que relata a tragédia do Dr. Fausto, homem das ciências que, desiludido com o conhecimento de seu tempo, faz um pacto com o demônio Mefistófeles, que lhe enche com a energia satânica insufladora da paixão pela técnica e pelo progresso. O preço, obviamente, seria sua alma. A peça é baseada levemente na vida do médico, mágico e alquimista alemão Dr. Johannes Georg Faust (1480-1540).
Pilhices & Afins
mefisto
Duzentos e um anos depois, em 2007, Peter Parker recorre ao mesmo demônio, que, usando o diminutivo Mefisto lhe faz uma oferta: as lembranças de seu maior amor - no caso, todas as recordações do seu casamento com Mary Jane Watson - em troca da vida de sua tia, May Parker, que, baleada, se encontrava às portas da morte e desenganada pela ciência (uma ciência que produziu nomes como Tony Stark, criador, dentre outras coisas, de uma armadura de combate senciente e Reed Richards, capaz de abrir portais para outras dimensões e elaborar prisões de segurança máxima por lá). Depois de muita indecisão e questionamentos, MJ acaba tomando a frente e aceitando a oferta do coisa-ruim.
Assim, com um passe de mágica, tudo muda na vida de Peter Parker. Ele - e o resto do mundo - esquece de sua vida de casado, da evolução forçada que seus poderes receberam durante a saga "O Outro", de sua filha perdida e, obviamente, dos anos passados ao lado de Mary Jane. MJ e o resto do universo Marvel sofrem mais ou menos da mesma perda de memória. O mundo se esqueceu de que Peter Parker revelou sua identidade publicamente durante a Guerra Civil, o que produziu um livro intitulado "Descarado: como Peter Parker arruinou minha vida", da quase ex-namorada do teioso, Debra "Deb" Whitman. Não só o livro e as memórias das pessoas, mas todas as evidências físicas da revelação desapareceram - mesmo as informações contidas nos sistemas mais protegidos das agências de informação, investigação e proteção dos Estados Unidos. Tudo desapareceu - literalmente - em um passe de mágica.
Mas o truque de Mefisto não se ateve aos desaparecimentos já que, aparentemente, ele também deu poderes à Mary Jane (ou à uma ruiva com a mesma linguagem corporal e maneirismos vocais dela), que assumiu a identidade heróica de Jackpot. Para fechar o truque com chave de ouro, Mefisto ainda trouxe de volta Harry Osborn, morto há tempos. Desnecessário dizer que, como sempre, Harry não se lembra do período no qual assumiu o legado do pai como o Duende Verde. Nem de sua esposa, Liz, e seu filho, Normie. Talvez ambos nem existam nesse novo cenário.
Como eu já escrevi em minhas duas últimas colunas, "A Brand New Day", nova fase na vida do Homem-Aranha traz uma série infindável de perguntas. Duas delas, porém, só vieram à minha mente depois que o furacão provocado por essas mudanças radicais na vida de Peter Parker passaram. Uma delas é a seguinte: Como é que um cara como Peter Parker, o símbolo do nerd certinho e gente boa, faria um pacto com o demônio, um representante de tudo contra o qual ele lutou a vida toda, mesmo que pra salvar uma vida? A resposta para essa é simples: o personagem foi tão descaracterizada ao longo dos últimos anos - e isso vai ser muito mais sentido a partir de agora no Brasil, com a publicação de "Back In Black", arco que marca a volta do uniforme negro e abre espaço para "One More Day" - que uma contradição a mais ou a menos não seria nada demais. O Peter Parker que conhecemos nunca faria a maioria das coisas que fez recentemente, seja revelar sua identidade secreta, seja atentar seriamente contra a vida de seus inimigos. É até estranho. Joe Quesada, o chefão da Marvel, não permite que Peter fume, faça sexo desprotegido ou mesmo se divorcie, pois acredita que isso seria um mal exemplo às crianças. Mas um pacto com o demônio é tranquilo. Vai entender...
A outra pergunta é bem mais sutil: desde quando Mefisto ficou tão poderoso a ponto de fazer uma lavagem cerebral em todo o mundo, sumir com evidências físicas e ressuscitar os mortos tudo com um encanto só e, ainda por cima, em troca de lembranças e não da alma de Peter, como seria o esperado? Só se ele estivesse sob o efeito de MGH, droga cada vez mais comum no Universo Marvel. Derivada do hormônio de crescimento mutante, a droga dá a pessoas normais capacidades mutantes durante um curto espaço de tempo ou aumenta exponencialmente os poderes daqueles já naturalmente dotados de capacidades super-poderosas. Do jeito que vejo as coisas, só isso explicaria o aumento nos poderes de Mefisto, já que nem o próprio Lúcifer conseguiria realizar tanto em tão pouco tempo.
É bom lembrar que Mefisto não é o demônio supremo do Universo Marvel e nem em lugar algum. Segundo a teologia, Mefisto, diminutivo de "Mefistófeles", vem do hebreu "Mephir" (Destruidor) e "Tophel" (Mentiroso). No inferno, ele seria um subordinado de Lúcifer, respondendo pelas seguintes funções: porta-voz imperial, bibliotecário chefe, enviado diplomático e diretor de marketing. Ele seria o mais perigoso de todos os demônios, sendo considerado por estudiosos medievais como abaixo somente do próprio Lúcifer. Esperto, sedutor e muito astuto, é considerado o Pai das Mentiras, o Príncipe da Impostura, o Patrono da Mediocridade. Dotado de extrema perspicácia, usa e abusa de uma lógica toda sua, distorcida, mas, ainda assim, com muito sentido, para atrair almas para si, fortalecendo o exército infernal. Reparem no último trecho, "usa e abusa de uma lógica toda sua (...) para atrair almas para si". ALMAS, não recordações de amores de casais felizes e casados.
Mesmo que o Mefisto da Marvel não seja uma "representação" do demônio descrito nos livros, mas sim uma "versão", que possui o mesmo nome e algumas características da lenda, ele não poderia ser mais poderoso do que Lúcifer. E olha que nem Lúcifer é lá uma Brastemp, já que vive passando aperto pra vencer o Motoqueiro Fantasma. Inclusve, recentemente o Motoca despedaçou o cramulhão, que se espalhou em - adivinhem! - 666 pedaços, habitando as almas de 666 pessoas. Tudo bem que o Motoqueiro tem que caçar e eliminar essas pessoas e, quando o fizer, todo o poder volta pro chifrudo, que se tornaria virtualmente invencível, mas isso é outra história...
O fato é que mesmo que a intenção de Quesada tenha sido boa, a execução da idéia parece uma comédia de erros. Pra eliminar uma única coisa da qual ele não gostava no personagem (o casamento de Peter e MJ) e tentar trazer um novo frescor ao personagem (ou melhor, recuperar a essência que o teioso tinha nos idos de 1970) ele desrespeitou quase todas as convenções nas quais a escrita de ficção e fantasia estão baseadas. E isso, mesmo que faça com que o Homem-Aranha volte a ter um apelo maior entre os leitores novatos, vai ser, indubtavelmente, uma mancha em sua carreira. Sem falar que, um dia, ele vai ter que justificar todo esse aumento nos poderes de Mefisto. Como é que um demônio mequetrefe desses que já tomou surras até do Justiceiro de repente arruma esse poder todo? Só se estiver chapado de MGH...