Piolhices & afins
J.R.R. Tolkien é assunto de dois livros e uma coluna caprichada!
O dom da amizade: Tolkien e C.S. Lewis - Colin Duriez
Lançado por aqui no segundo semestre do ano passado pela editora Nova Fronteira, O Dom da Amizade: Tolkien e C.S. Lewis, de Colin Duriez, é um prato cheio para todos os admiradores do gênero da fantasia e um item quase indispensável para todo e qualquer fã de dois dos maiores escritores do século 20, o sul-africano J.R.R. Tolkien (O Senhor dos Anéis ) e o irlandês C.S. Lewis (As Crônicas de Nárnia).
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O livro traça um paralelo entre as vidas dos dois autores, cuja convivência começou na Inglaterra dos anos de 1920 e foi marcada tanto por uma grande amizade, influência e respeito mútuos, como também por discussões acaloradas e censuras, fossem elas puramente profissionais ou pessoais.
É interessante perceber o quanto Tolkien e Lewis tinham em comum: ambos tiveram a infância marcada por tragédias familiares - Tolkien perdeu os pais e Lewis, a mãe quando ainda era uma criança. Os dois ingressaram nas forças armadas e serviram aos Aliados durante a Primeira Guerra Mundial, sofreram da chamada "febre das trincheiras" e foram dispensados do serviço, não sem antes perderem grandes amigos no conflito. Tanto Tolkien quanto Lewis tinham um grande interesse por línguas mortas ou há muito em desuso, assim como pela literatura européia estabelecida durante a Idade Média e uma forte resistência ao dito modernismo literário. Ambos lecionaram em Oxford, onde se conheceram, e lutaram por boa parte de suas vidas para desvincular o gênero do conto de fadas - ou histórias de fadas, como queiram - da imagem de literatura infantil, na tentativa de transformá-lo em literatura adulta. Em diferentes níveis, conseguiram.
A obra também estabelece as diferenças entre esses dois gênios da literatura fantástica. Enquanto Tolkien era lento e meticuloso em seus escritos, Lewis era prolífico e rápido. Tolkien gastava muito tempo criando suas histórias, estabelecendo todo o passado, presente e mesmo o futuro dos mundos fantásticos que criava - geralmente tendo por base as línguas que criara - visando torná-los o mais realistas possível; Lewis, apesar de também criar mundos fantásticos bastante críveis, escrevia de maneira mais errática e variada. O sul-africano manteve seu foco principal na fantasia, principalmente preenchendo sua Terra Média de contos e histórias; O irlandês dedicou-se não só à fantasia, como também à ficção científica e à teologia. Este, aliás, é um dos maiores pontos de discórdia entre os amigos. Tolkien era um católico devoto cuja espiritualidade, ainda que comentada e debatida com os amigos, mantinha mais para si mesmo; Lewis, inicialmente um ateu, fora convertido ao Cristianismo justamente por Tolkien. Ao contrário do amigo, no entanto, acabou enveredando para o Protestantismo e passou a pregar sua religião através de livros, programas de rádios e palestras. Um dos grandes pontos de discórdia entre Tolkien e Lewis é justamente a forma como o criador de As Crônicas de Nárnia utiliza sua obra como uma alegoria cristã, sendo o leão Aslam uma representação clara de Jesus Cristo.
O que fica claro, no entanto, é o fato de que, se esses homens hoje são reverenciados e respeitados por sua obra, isso se deu, principalmente, pela relação de amizade que mantiveram ao longo de quase quatro décadas. Ainda na década de 1930, Tolkien e Lewis eram parte de um grupo literário chamado "os Inklings" - para os quais Tolkien dedicou "A Sociedade do anel". Eles se reuniam pelo menos duas vezes por semana para discutir (principalmente) literatura e usavam seus encontros também para ler seus escritos não-curriculares. Foi lá que O Hobbit viu a luz do dia pela primeira vez e foi comentado e criticado pelos Inklings antes de Tolkien decidir-se por submetê-lo a um editor. E foi graças ao entusiasmo de Lewis, ao escutar Tolkien lendo os primeiros esboços de O Senhor dos Anéis, que o sul-africano encontrou forças para terminar seu épico. Da mesma forma, foi muito devido à influência de Tolkien que Lewis produziu não só As Crônicas de Nárnia como sua trilogia de ficção científica Além do planeta silencioso, que conta as desventuras de Elwin Ransom, um filólogo de Oxford, levado contra sua vontade ao planeta Malacandra (Marte). Aliás, é interessante notar que tanto O Senhor dos Anéis quanto Além do planeta silencioso surgiram de uma aposta entre os dois. Numa tarde de 1936, Lewis propôs um desafio no qual um deles deveria escrever uma história sobre viagem no tempo e o outro, no espaço. O resultado disso todos conhecemos.
Além de abordar as idéias e aspectos literários das obras de Tolkien e Lewis, O dom da amizade trata também de aspectos pessoais da vida de cada um individualmente. Cada capítulo é dividido quase que igualmente entre um e outro, justamente para mostrar os paralelos entre suas vidas, e como esses acontecimentos pessoais afetaram seu trabalho e obra. A livro ainda traz como apêndices um resumo cronológico da vida de ambos e uma tentativa de explicar a duradoura popularidade de ambos. E, o mais interessante, uma extensa bibliografia que pode orientar os trabalhos de qualquer um que queira se aventurar mais seja na vida, no trabalho ou nas influências - literárias, especialmente - que marcaram as vidas dos dois autores.
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Sobre histórias de fadas: J. R. R. Tolkien
J.R.R. Tolkien é, se não a maior, uma das maiores autoridades quando o assunto é literatura de fantasia. É difícil - pra não dizer praticamente impossível - desconhecer seu clássico O Senhor dos Anéis, obra cultuada e bastante influente, um marco da cultura pop já bem antes de ser transformada em trilogia cinematográfica pelo neozelandês Peter Jackson.
Menos popular, no entanto, são as idéias que Tolkien nutria a respeito do gênero ao qual dedicou sua vida. Antes de Tolkien - e, infelizmente, ainda nos dias de hoje, mesmo que em menor escala - os ditos "contos de fadas" eram considerados histórias apropriadas para serem lidas ao lado da cama dos filhos, e não uma literatura séria, destinadas ao público adulto. Após a publicação de O Senhor dos Anéis e de um sem-número de obras influenciadas direta ou indiretamente por ele, o cenário mudou um pouco e hoje a fantasia tem um espaço mais digno no panteão do que é considerado "literatura para adultos".
Sobre histórias de fadas (Conrad Editora) chega para mostrar as idéias de Tolkien principalmente sobre dois assuntos: 1. o gênero da fantasia; 2. como os textos publicados no passado - especialmente contos da Escandinávia e da Idade Média inglesa - influenciaram suas obras e, principalmente, suas opiniões a respeito do assunto, tanto no passado quanto durante a época em que viveu. O livro traz um longo ensaio baseado em uma conferência realizada por Tolkien em 8 de março de 1939 e o conto "Folha por Niggle", no qual já se pode observar diversas características que seriam apresentadas em sua obra-prima.
O ensaio "Sobre histórias de fadas" é um prato cheio não só para o fã de Tolkien, mas para qualquer pessoa interessada em pesquisar mais a fundo a literatura fantástica. O principal foco na conferência foi a análise da fantasia que o procedeu, fossem estes textos antigos como "Beowulf" - considerado por muitos analistas uma das pedras fundamentais da literatura inglesa, escrita por volta do ano 1.000 - ou contemporâneos de sua época, especialmente contos de fadas franceses, como "O gato de botas".
Ao longo do ensaio Tolkien explora as diversas características do termo "Faery", que ganhou a tradução apropriada de "Belo Reino", um mundo mágico que, sob certas condições, pode se cruzar ou se tornar acessível a nós. De forma bastante competente, Tolkien derruba mitos, como o de que histórias de fantasia são puro escapismo, e mostra o valor que elas trazem consigo; desmistifica o "Belo Reino" como sendo simplesmente um mundo apinhado de pequenas mulheres com asas de insetos e capazes de realizar mágicas e encantos; e faz uma distinção clara entre os contos de fadas e as fábulas, que trazem basicamente animais falantes e com características bastante humanas. Ele também explora a forma como os mundos de fantasia devem - ou, pelo menos, deveriam - ser construídos, cada um com a sua história própria bem sedimentada, de forma que seus aspectos fantásticos (e distantes da nossa realidade) sejam convincentes. Segundo Tolkien, se meu mundo fantástico é iluminado por um sol verde, antes é necessário se construir toda uma realidade que não só justifique a existência de um sol verde, como também faça com que o leitor aceite a possibilidade - mesmo que remota - da existência de algo assim. Basicamente, ele analisa formas de se criar o que é popularmente chamado de "suspensão de descrença", termo que ele, a propósito, não utiliza.
Sobre histórias de fadas é recheado de notas de rodapés e traz diversas e longas observações do próprio Tolkien em um apêndice. O conto "Folha por Niggle" é quase um "bônus". No começo da história, Niggle - um pintor especializado no retrato de folhas - está trabalhando em um grande quadro, uma paisagem dominada por uma árvore que só permite o vislumbre do mundo real através das suas folhas. O quadro parece ser sua obra-prima, já que não pára de crescer, seja porque o pintor sempre quer trabalhar mais nessa ou naquela folha, seja pelas freqüentes interrupções, a grande maioria provocada por seu vizinho cocho,o senhor Parish.
Da mesma forma que acontece com Bilbo em O Hobbit e com Frodo e seus companheiros em O Senhor dos Anéis, logo a vida de Niggle vai passar por uma virada, e ele será obrigado a abandonar sua casa - e seu quadro - para passar por uma série de provações, antes de encontrar a redenção e realizar seu maior sonho. Contar mais do que isso seria estragar a história.
Apesar de "Folha por Niggle" não mostrar Tolkien em plena forma, é um registro interessante e leve do começo de sua carreira. O conto foi originalmente publicado em 1947, enquanto O Senhor dos Anéis ainda estava no estágio inicial de gestação.
Junto com O dom da amizade, Sobre histórias de fadas é um livro muito interessante e vai agradar não só os admiradores declarados de um dos maiores nomes da literatura do século 20, como também todos aqueles interessados em saber mais sobre o homem por trás da caneta, por assim dizer.
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