Omelete entrevista: David Soares
Omelete entrevista: David Soares
![]() |
![]() |
![]() |
![]() |
![]() |
![]() |
![]() |
![]() |
Apesar de partilharmos a mesma língua (com algumas variações), nós, brasileiros, conhecemos muito pouco sobre o que se passa no rico filão das histórias em quadrinhos de Portugal, lá chamadas de Bandas desenhadas, ou BD, para os íntimos.
A fim de reduzir um pouco este hiato, o Omelete inicia uma série de entrevistas, conduzidas pelo nosso colaborador lusitano Hugo Silva, com vários autores do outro lado do Atlântico. Pra começar com pé direito, Hugo nos trouxe um bate-papo com David Soares, um dos mais conceituados quadrinhistas portugueses da atualidade.
David Soares nasceu em Lisboa. É o autor dos álbuns de quadrinhos (banda desenhada em Portugal) Sammahel, Mr. Burroughs e Cidade-Túmulo, e do livro de contos Mostra-me a Tua Espinha.
Premiado com dois troféus de Melhor Argumentista Nacional, em 2001 e 2002, pelo Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora e pelo site de BD Central Comics.
Omelete entrevista :: David Soares
O ano de 2003 começou com o lançamento do A última grande sala de cinema ao qual te dedicaste durante um ano inteiro. Pode-se dizer que é a tua obra mais pessoal até ao momento?
Comecei a escrever este livro em 2001, quando ainda me encontrava a fazer o Sammahel. Desenhá-lo demorou, aproximadamente, um ano e meio. Realizei mais pranchas que não se encontram neste álbum e que farão parte do segundo volume; uma preqüela.
Se é mais pessoal não sei, mas é o trabalho que melhor reflete meu universo de autor. Foi o álbum onde me senti mais à vontade para explorar meu interesse pela história e pelo oculto e onde levei mais longe a convivência de pessoas reais com criaturas imaginárias. Acredito que fazer o Sammahel e editar Mostra-me a tua espinha deu-me mais a vontade para o fazer. Não estou interessado em criar histórias semelhantes à vida comum; o que quero é falar das paixões humanas pela voz de criaturas imaginárias.
Um livro de quadrinhos com 120 páginas num mercado como o português já é uma atitude arriscada, mas tu ainda lanças o mesmo por uma editora, digamos, desconhecida, a Circulo de Abuso. Alguma razão para isso? Uma vontade de seres tu a guiar teu trabalho do princípio ao fim?
A razão principal é mesmo essa que apontaste; agarrar pela crina esse controlo e sentir que dominas o final-cut. Obviamente, se este álbum saísse por uma editora maior, isso seria muito agradável, mas nunca teria a liberdade para desenhar as imagens que criei. Penso que muito do seu conteúdo sexual, muitas vezes homossexual, ou com um imaginário masculino muito forte, seria logo cerceado para não desagradar os mais anestesiados leitores. E eu gosto de personagens gays; eles não vão deixar descendência, seus genes terminam ali - cada um é como uma criatura a caminho da extinção. Esse sentimento de danação fascina-me imenso; penso que são perfeitos para desenvolver personagens solitárias e melancólicas. Eu não gosto de banda desenhada erótica, ou pornográfica, que acho aborrecida, mas gosto de associar cenas de sexo a outras, mais violentas. Editar o meu trabalho pela Círculo de Abuso permite-me ir sempre mais longe, sem censura.
És conhecido como um dos mais promissores argumentistas em Portugal com trabalhos de sucesso como o Samael. No que consiste tua escalada de sucesso num mercado tão complicado como é o de banda desenhada portuguesa? Qual a regra por que te reges?
Em essência, escrevo e desenho aquilo que gosto de ler; se fosse agora mesmo à procura de um livro de banda desenhada, para comprar, de certeza que traria para casa algo semelhante a A última grande sala de cinema. Penso que existem dois fatores que poderão funcionar a meu favor: o primeiro, é que, em território nacional, ninguém se encontra a desenvolver o mesmo gênero de histórias que escrevo; e o segundo, por que não tento embeber os meus argumentos em toneladas de pseudo-significados. Tudo o que faço é deixar as histórias serem histórias, e mesmo que o leitor médio não descodifique todas as referências herméticas que lá estão, consegue seguir a narrativa sem problemas e os leitores que estão familiarizados com as temáticas ocultistas sentir-se-ão em casa, também.
Acredito que os autores, agora, possuem uma visão menos redutora dos temas que a banda desenhada portuguesa deve abordar e como essa abordagem se deve operar. Já não existe uma fórmula para a banda desenhada portuguesa. Eu gostaria de ser um dos autores que virará a mesa e ensinará os leitores portugueses a valorizarem o argumentista, como acontece nos mercados britânico e norte-americano, mas, admito, que isso se trata de uma ego-trip pessoal que nem se encontra muito próxima das minhas intenções enquanto autor.
Decerto sabes que tua imagem, contribui para uma empatia do público mais jovem, mas essa imagem de, como direi, satânico, sempre vestido de negro com anéis e pulseiras preponderantes tem uma razão de ser ou se não é nada mais do que um trabalho detalhado de marketing e imagem?
Para os meus amigos mais antigos, a minha imagem não é surpresa nenhuma. Eu sempre me apresentei com uma estética muito semelhante a esta que tenho hoje, com algumas variações, decerto, mas a matriz sempre foi igual. Lembro-me que, há alguns anos, cortei o cabelo porque me apeteceu uma mudança e há dois anos deixei-o crescer de novo. As comparações com o Alan Moore divertiram-me no início, pelos motivos óbvios, mas agora começo a fartar-me desse gênero de comentários. Se sou parecido com esse autor, também o são 80% do pessoal que freqüenta o Bairro Alto, em Lisboa. A razão por que deixo crescer a barba é por que costumo escrever e desenhar à noite e só me deito, normalmente, pelas 3h30 da manhã: a última coisa que desejo é acordar uma hora mais cedo para me barbear. Se os autores desse tipo de comparações conhecessem algumas bandas de Stoner Rock, para citar um exemplo pragmático, descobririam que o Alan Moore não tem o copyright do cabelo e barba compridos
Mas a minha imagem não interessa nada: o meu trabalho é o que importa.
No último festival de Amadora, eras um dos artistas que mais público continha nas suas fileiras. Quando, por exemplo, estavas ao lado de autores como Veitch, isso faz-te sentir bem ou não dá tanta importância aos fãs caçadores de autógrafos e desenhos autografados?
Não senti que fosse dos autores que tivesse mais afluência; penso que não, mas quem está de fora vê sempre melhor. O que gosto verdadeiramente nesses encontros é de falar com outros autores e descobrir que gênero de pessoas são, de conversar com os leitores e entender por que motivos gostaram, ou não, de determinado livro. A sessão de 2001 foi mais afetuosa: com leitores a pedir para lhes autografar as suas páginas preferidas. Acredito que esses diálogos é que valem a pena a nossa presença.
O que te desilude mais no panorama português?
Fico desanimado com a falta de credibilidade que a banda desenhada ainda tem. Socialmente, quando me apresento como autor de banda desenhada, as pessoas fazem uma cara desconsolada ou falam qualquer comentário pateta sobre o Asterix. Parece mentira, mas ainda se verificam estas situações. Não obstante, agrada-me sentir que a banda desenhada ainda é um meio pequeno, onde os autores trabalham por paixão; posto que os lucros que advém desta atividade são poucos.
Os tempos que se aproximam, contudo, serão, indiscutivelmente, de mudança; para o nosso mercado, no mínimo. Penso que as coisas estão a tomar uma direção mais comercial, mas, pelo menos de início, isso não é mau.
Pretendes fazer teu livro ultrapassar fronteiras? Com os bons resultados de José Carlos Fernandes e seu Quiosque da Utopia, podemos ver, um dia, David Soares por esse mundo fora? Pelo Brasil por exemplo?
Provavelmente, mais cedo do que pensas: tenho umas idéias que quero por em prática, num futuro próximo, circunscreventes a esse tópico, mas, por ora, estou mais preocupado em realizar uma boa promoção cá dentro.
O que te inspira a desenhar/escrever? Algo que vês na rua? Um anúncio na televisão?
A inspiração para A última grande sala de cinema veio do encerramento da sala de cinema de Queluz; uma pequena sala de centro comercial, mas que, para mim, era muito importante. Senti-me realmente deprimido com o fecho dessa sala. Cheguei lá e o projecionista encontrava-se, de tronco nu, a tirar as cadeiras (como podes ler no álbum - essa situação é real). Percebi que aquela sala era, na verdade, grande: era a minha última grande sala de cinema. Regressei a casa, sentindo que existia ali uma boa história para contar.
Costumo andar com um bloco, onde aponto as idéias repentinas e situações interessantes. É o meu bestiário urbano pessoal. Não conheço outra mecânica para conceber boas idéias e atraí-las.
Se um dia te dessem a escolher uma personagem da banda desenhada européia ou dos comics norte-americanos para escreveres qual escolherias? E qual rumo darias ao mesmo?
Eu sempre gostei muito do Batman mas ele já foi tão explorado Talvez o Dr. Estranho, porque suas histórias têm afinidades estéticas comigo. Transformaria o Dr. Estranho num bom ilusionista: um bon vivant, egoísta, excelente na magia mas um fracasso na sua vida pessoal. Espera, ele já é assim, não é? Bom então não sei.
Para terminar o que dizes para que quem esteja vendo esta entrevista fique interessado em adquirir teu livro?
Que A última grande sala de cinema é a matriz do que pretendo realizar no futuro em banda desenhada. Daqui para a frente, tudo terá origem aqui. Por isso, comprem-no para se irem habituando.







