Quando China Miéville recebeu o convite para escrever O Livro de Algum Outro Lugar ao lado de Keanu Reeves, ele logo decidiu que precisava saber quais eram os “inegociáveis” do astro de Hollywood. “Tenho que admitir que fiquei muito surpreso com o quão flexível ele era. Eu esperava que ele tivesse restrições mais severas”, diz ele ao Omelete.
O volume literário, que chega às prateleiras brasileiras em 6 de maio pela Editora Jangada, é ambientado em um universo paralelo da série de quadrinhos BRZRKR, criada por Reeves. O protagonista, o guerreiro imortal B., é o mesmo - mas os acontecimentos da trama são independentes dos que rolam nas páginas das HQs.
Abaixo, Miéville revela detalhes da colaboração com Reeves, do seu interesse pelos temas e filosofia abraçados pelo ator, e até da possibilidade de mais contribuições dele para a franquia BRZRKR. Confira!
OMELETE: Olá, China, prazer em conhecê-lo e parabéns pelo livro. Estou lendo e adorando.
MIÉVILLE: Oh, muito obrigado. Obrigado por me receber aqui.
OMELETE: Claro, eu estou muito curioso sobre o processo de sua colaboração com Keanu. Você falou sobre, inicialmente, tentar medir os pontos inegociáveis dele e os seus. Você pode elaborar sobre isso? Que tipo de coisas vocês estabeleceram primeiro e em que momento você decidiu dizer ‘sim’ para este projeto?
MIÉVILLE: ‘Pontos inegociáveis’ foi o termo que eu usei em outras entrevistas, mas foi meio de brincadeira. Acho que faz parecer que Keanu é muito mais severo do que realmente é, mas era importante para mim entender o que poderia ser flexível nessa história imaginada por ele, e o que era central demais para isso. Então, ‘inegociável’ é nesse sentido. Quando nos conhecemos, eu pedi a ele para expor quais aspectos do personagem e do mundo ele via como inegociáveis, e quais ele estava aberto para que eu brincasse.
Não foi um teste, entende? Eu genuinamente queria entender os parâmetros. E tenho que admitir que fiquei muito surpreso com o quão flexível ele era. Eu esperava que ele tivesse restrições mais severas. Especialmente porque eu tinha imaginado, inicialmente, que a nossa história teria que ser ambientada muito claramente dentro do mundo dos quadrinhos. E eu certamente ainda teria considerado fazer o livro mesmo assim, mas muito rapidamente ficou claro que ele estava mais interessado em trabalhar comigo.
A analogia que usei em entrevistas anteriores é que era como se ele tivesse um conjunto de brinquedos, e quisesse ver que jogos outras pessoas podem jogar com esses brinquedos. E os brinquedos eram mais simples do que eu imaginava. Havia certos aspectos-chave sobre o personagem - sua idade, sua imortalidade, e assim por diante - que ele queria manter, mas muitas das coisas que aconteceram dentro dos quadrinhos não precisavam ser consideradas, entre aspas, ‘cânone’.
Por isso que sempre definimos esse livro como uma nova abordagem do personagem. É uma versão do personagem, ao invés de ser uma adaptação em romance do quadrinho, ou qualquer coisa assim. E foi realmente uma surpresa para mim o quão aberto ele estava a seguir direções que eram mais experimentais do que eu tinha imaginado. Isso deixou minha vida muito mais fácil. Quando percebi quanto espaço havia para brincar, foi muito mais fácil dizer sim, porque significava que poderíamos fazer algo que honrasse o material original mas também tentasse fazer algo novo.
OMELETE: Certo. Eu já entrevistei o Keanu antes, então sei o quão caloroso e aberto ao diálogo ele é, mas qualquer um que o conhece também sabe que ele tem ideias muito fortes, filosofias que guiam o seu trabalho. O quanto dessas filosofias está no livro, e quanto estão misturadas com os seus próprios insights?
MIÉVILLE: Com certeza, muito dessa filosofia está lá. A identidade central dos personagens, aqueles pontos inegociáveis que eu citei, são constitutivos das filosofias e ideias dele. E, sabe, há certos temas de perda, de melancolia e existencialismo, pontos de interrogação em torno do que é ser humano… como você disse, são preocupações que perpassam muito da obra de Keanu, dos projetos que ele assume. Quase sempre, na arte dele, se vê uma corrente subterrânea de exploração filosófica.
Enquanto isso, eu me interesso pelas coisas que sempre me interessei: tradições do grotesco, tradições políticas, esse casamento entre uma sensibilidade pulp e uma exploração de vanguarda. Eu sei que isso soa pretensioso, mas não tenho outra forma de definir. A questão quando você está fazendo uma colaboração, no entanto, é querer que não seja algo puramente aritmético. Não é um pouco mais de Keanu, um pouco mais de China, é uma terceira coisa que nunca teria acontecido de outra forma. Não é 1+1 = 2. É a interação dialética entre as duas pessoas.
Isso significa que, se fizemos nosso trabalho corretamente - e, na minha opinião, fizemos - fica bastante difícil olhar para o livro e dizer: bem, esta é a minha ideia, esta é a ideia dele. Elas simplesmente se entrelaçam, e como escritor você nem sempre está ciente das ideias que está explorando. Uma das coisas mais interessantes para mim é quando as pessoas dizem que fiz isso ou aquilo, e eu penso: ‘Uau, não tinha me ocorrido!’. Mas elas dizem, e acho que estão absolutamente certas. Acho que o Keanu tem a mesma experiência, até certo ponto - certamente já vi ele falando sobre isso.
Outra coisa que eu posso te dizer é que já existe uma sobreposição nos nossos interesses pessoais - acho que ele brinca com existencialismo melancólico, e eu com uma política melancólica. Mas acho importante dizer que haverá aspectos da nossa colaboração dos quais nenhum de nós estará necessariamente consciente, e aí se torna uma segunda colaboração, com o leitor, para descobrir essas coisas junto conosco e por nós.
OMELETE: O livro começa com uma cena muito forte, muito brutal, envolvendo o personagem B. e um grupo de soldados. Pessoalmente, você gosta de escrever ação? E o que é preciso para fazer uma cena de ação funcionar, especialmente aqui, em uma franquia que começou nos quadrinhos?
MIÉVILLE: Esta é uma pergunta muito interessante. Historicamente, tenho uma ambivalência sobre escrever cenas de ação - não porque eu tenha um problema com isso, adoro ação bem escrita, mas suponho que há dois ‘poréns’ para mim. Um é que, especialmente se você está escrevendo dentro de uma tradição de gênero como eu estou, a linha entre uma descrição cuidadosamente elaborada e um tipo de fantasia adolescente, ou uma espécie de fantasia masturbatória, é muito tênue. Eu não quero ser esnobe sobre isso, porque é tudo uma brincadeira, mas não é muito interessante para mim escrever dessa forma, e pode descambar para o clichê muito facilmente.
O segundo ‘porém’ é que, e aí entramos no que você citou, os prazer dos quadrinhos é que eles são um meio visual. Você pode pegar coisas terríveis e dar a elas certa beleza. Se você desenha uma cena de luta realmente incrível, apesar da violência dela, pode transformá-la em um espetáculo incrível. Por outro lado existem, claro, escritores maravilhosos de ação - mas, para mim, acho que um pouco já é o bastante, porque se não as descrições podem se tornar listas intermináveis de elaborações dolorosas, e cair em algo farsesco.
Então, quando você olha para o equilíbrio de [O Livro de Algum Outro Lugar]... se quiser, digamos, dividir o número de cenas de ação por página, vai ver que elas não estão em quantidade enorme. E, quando elas acontecem, tende a ser de maneira bem rápida. Aquela primeira que você citou, de certa forma, é bastante incomum, e isso foi uma estratégia para surpreender os leitores. Se você começa o livro pensando que vai ser certo tipo de história de ação, mas logo pula para um monólogo filosófico super melancólico sobre Sigmund Freud… entendo que não vai funcionar para todo mundo, mas parte do prazer para nós foi começar com algo muito violento, muito pulp, e depois fazer algo muito diferente.
Então não, eu não me considero primariamente um escritor de ação. Eu tento fazer um pouquinho aqui e ali, e fazer da melhor forma possível - mas não é nisso que o livro, ou qualquer um dos meus outros livros, se demora. Existe um momento aqui em que parece que estamos nos encaminhando para uma cena de ação, mas logo corto para depois da luta, para as consequências dela.E eu fiz isso em alguns livros já. Não é porque eu tenha um problema de princípio com escrever cenas de ação, há cenas de luta nos meus livros e espero que sejam agradáveis - mas porque, até certo ponto, a gramática da ação é previsível. Não tem muito sentido se demorar nisso.
É claro que para um livro como esse seria, por um lado, uma trapaça, uma quebra de boa fé não ter cenas de ação. Não é isso que as pessoas procuram nesse livro. Mas, ao mesmo tempo, não tenho nenhum problema com uma certa abordagem lúdica onde, em vez de tê-las a cada 10 páginas, podemos dizer: ‘Ei, leitor, você sabe o que vai acontecer lá, certo? Então vamos pular essa parte’.
OMELETE: Você citou a imortalidade do personagem principal, um dos principais temas do livro, e o quanto isso pesa sobre ele. Nós já vimos muitas narrativas na ficção científica e na fantasia sobre personagens imortais - o que te fascinou sobre isso, e o que te fez querer escrever sua própria abordagem?
MIÉVILLE: Antes de mais nada, você está certo. É uma ideia clássica, certo? Quando eu era criança, minha mãe tinha uma cópia do livro Melmoth the Wanderer - não sei se você está familiarizado com ele, mas é um romance gótico vitoriano, muito histriônico e exagerado, sobre um imortal. E eu não acho que seja um livro particularmente bom, mas ele teve uma presença muito grande na minha infância. Então, eu sempre tive esse fascínio pelo arquétipo do imortal atormentado.
O que eu gostei na abordagem do Keanu, e estes eram alguns dos pontos inegociáveis dele, é que existiria uma melancolia no personagem, mas não é o tipo de histrionismo com om qual estamos acostumados. Não estamos apenas lidando com mais um vampiro lânguido, sabe? É mais contemplativo do que isso. Mas, acima de tudo, ele não quer morrer. Ele quer ser capaz de morrer, mas não morrer agora. E isso eu acho realmente interessante, porque já li tantos livros e quadrinhos em que o imortal quer morrer. Alguém querer essa potencialidade, mas não querer deixar o mundo, me pareceu fascinante.
Outro aspecto é que B. não é impossível de se destruir. Ele é muito, muito, muito difícil de destruir - então, às vezes, se você o destrói, ele renasce de um ovo do seu próprio corpo, com todas as suas memórias intactas. E parte da investigação do livro é a distinção entre isso e a imortalidade, as questões filosóficas e conceituais que surgem dessa diferença.
OMELETE: Bom, você tem falado sobre o quanto adorou brincar neste universo criado pelo Keanu. Será que podemos esperar mais contribuições suas nesta franquia? Há mais histórias que você quer contar aqui?
MIÉVILLE: Isso realmente não depende de mim.Eu me diverti muito e ficaria muito, muito feliz em fazer mais coisas. Percebo que essa é uma resposta padrão de coletiva de imprensa, mas honestamente acho que o Keanu tem um projeto de colaboração incrível. Ele tem seus brinquedos, criou essas coisas, e olha ao redor de si para encontrar artistas ou criativos nos quais se interessa, dizendo: 'Bem, o que você pode fazer com isso? O que você pode fazer com isso?'.
Por um lado, o que isso significa é que possivelmente ele não queira repetir colaborações, porque se está fazendo algo comigo de novo, não está fazendo com aquela outra pessoa interessante. Se esse for o caso, para mim está tudo bem - mas se a oportunidade surgisse e ele estivesse a fim, estou aqui também. Foi muito importante para mim que ele ficasse feliz com o resultado dessa colaboração, porque são os brinquedos dele, então levei bastante tempo para aceitar que estava pronto. Agora, uma vez que entregamos esse, que trabalhamos bem juntos, o sarrafo tem que subir - não podemos simplesmente fazer a mesma coisa de novo.
Então, se resolvêssemos fazer isso mais uma vez, teríamos que passar por todo o processo criativo, pensar em algo que adicionasse coisas novas à receita, e com o qual nós ficássemos realmente satisfeitos. Eu ficaria encantado se isso acontecesse.
OMELETE: Muito obrigado, China! Mais uma vez parabéns pelo livro, e boa sorte com o lançamento.
MIÉVILLE: Muitíssimo obrigado, querido! Se cuide, tchau tchau.
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