[Artigo] Negros Gigantes: fugindo da zona da invisibilidade

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[Artigo] Negros Gigantes: fugindo da zona da invisibilidade

Em novo livro, Alê Garcia, apresentador do Omelete e finalista do Prêmio Jabuti, conta histórias inéditas do próprio passado e homenageia heróis brasileiros e internacionais. Leia abaixo o artigo dele sobre seu novo trabalho

Omelete
8 min de leitura
27.06.2022, às 15H26.

Eu cresci em um local chamado Restinga, bairro de Porto Alegre criado nos anos 70 para mandar para bem longe — para tornar invisíveis — mulheres e homens negros e pobres que vinham do interior e, na opinião da elite local, enfeiavam o centro da capital do Rio Grande do Sul.

Você deve ter assistido ao filme Cidade de Deus. O nascimento da Restinga foi muito semelhante ao daquele bairro do Rio de Janeiro e, embora eu tenha nascido quando aquele local já evoluíra bastante, você ainda pode ver, se quiser, em um livreto oficial da prefeitura de Porto Alegre, Memória dos Bairros: Restinga, as fotos em preto e branco quando tudo era um reduto distante sem água, luz e esgoto: mulheres jovens banhando crianças em bacias ao lado de fora de malocas de madeira, mulheres idosas carregando baldes d’água na cabeça, homens de tez acinzentada usando o barro fresco como refrigerador para garrafas de vidro de Pepsi-Cola, closes em bocas escuras e enrugadas mastigando dentaduras inexistentes.

Eu cresci em uma periferia no estado do Rio Grande do Sul.

A Restinga começou assim, usando um método coerente com a lógica do capitalismo: o feio, o negro, deve ser ocultado, segregado, escondido. E esta premissa, como Abdias Nascimento deixa claro em O Genocídio do Negro Brasileiro, faz parte de uma ideologia oficial que ostensivamente apoia a discriminação econômica por motivo de raça.

Felizmente, na década de 1980 e nas seguintes, a comunidade da Restinga se organizou e se projetou para um lugar muito longe disso. Tornou-se uma das comunidades essencialmente negras mais importantes do Brasil. Nascedouro de artistas, esportistas, intelectuais, políticos. E, por isso, reduto de resistência política, de líderes locais que influenciaram e influenciam as eleições. Um exemplo de autossuficiência, empoderamento e evolução.

E foi neste lugar, entre livros, discos e amigos, que forjei parte fundamental de quem eu sou.

Entre as leituras com as quais pude cedo me confrontar — porque meu pai era um secretário de escola que abastecia nossa casa de livros e discos e isto era, sim, o meu privilégio —, James Baldwin foi uma das primeiras. Alguém que até hoje me inspira e empodera de muitas formas. Mas há uma frase sua da qual discordo: "Se escrevo tanto sobre a condição do negro, não é por achar que não tenho outro assunto, mas só porque foi esse o portão que me vi obrigado a destrancar para que pudesse escrever sobre qualquer outra coisa”.

Diferente de muitas pessoas negras, eu cresci com uma grande autoestima. Porque no momento em que eu era uma criança naquele bairro, ao ver o poder de mobilização daquelas pessoas, eu sempre tive a convicção de quão grande nós, negros, somos.

Ao conhecer o mundo, no entanto, logo me dei conta do quão pífia é nossa representatividade comparada à nossa potência. Então quis colocar em prática a certeza de que nós precisamos ser donos de nossas narrativas. Uni minhas duas paixões — cultura negra e narrativas —, e me questionei sobre que histórias meu filho, João, iria ouvir sobre pessoas como nós. Estes foram os motivadores para que eu passasse a contar as histórias destas pessoas negras incríveis, uma por semana: nascia meu podcast Negro da Semana, nascia meu canal no YouTube.

Falar de cultura negra se tornou meu propósito. E este propósito logo se viu tão grande, que passei a falar sobre isto em todas as plataformas, buscando empoderar e inspirar outras pessoas, assim como eu sempre me empoderei e me inspirei pela trajetória incrível dos que vieram antes de mim. E isto acontecia a cada livro de autor negro que lia, a cada filme, peça teatral, invenção ou produção musical protagonizados por pessoas negras.

A forma como a cultura afro é subestimada me entristece muito, assim como a consequência óbvia disso: o pouco conhecimento que os negros têm de sua própria história. Nós somos pilar fundamental da cultura brasileira. E muitas pessoas não têm noção da grandiosidade das nossas contribuições científicas, políticas, arquitetônicas, literárias, artísticas.

Ao contrário de James Baldwin, eu não escrevo sobre cultura negra para destrancar a possibilidade de escrever sobre qualquer coisa. Eu escrevo sobre negritude porque é transcendente para mim. Eu me dou conta disso a cada segundo, emocionado com nossas conquistas e realizações. E o que motiva a criar mais um podcast, mais uma série de vídeos, mais um livro, é que você também sinta esta transcendência.

Este é o grande objetivo de estar lançando Negros Gigantes: as personalidades que me trouxeram até aqui. Revisitar a minha trajetória, apresentar a história daqueles que me impulsionaram — desde os meus dez anos de idade, até hoje — e registrar isso: para que estas histórias sejam motivadoras e potencializadoras de outras grandes histórias.

"Este livro é descomunal, é sensível, acessível, necessário. Este livro é um feito. Seu autor, Alê Garcia, estabelece uma narrativa de entrecruzamentos de perspectivas que se alinha de modo singular à incrível revolução que vem acontecendo nos últimos anos. (...) Temos aqui um marco da literatura não-ficcional"
Paulo Scott, escritor

É preciso nunca esquecer a força que as narrativas têm. Quantas mensagens já recebi de ouvintes, emocionados com as histórias que conto no podcast Negro da Semana? Do menino da periferia feliz ao saber que, por causa da música, Sabotage saiu da criminalidade. Da senhora de idade incrédula com a vida sofrida que Elza Soares teve até se tornar uma das cem maiores vozes do mundo.

O processo de escrita deste livro, não posso negar, foi mais doloroso do que imaginei. Pois foi um mergulho em lembranças duras demais, vividas por um Alê então criança. Afinal, qual a idade aceitável para um garoto negro descobrir que provoca aversão?

Um escritor precisa ser muito habilidoso para conseguir envolvê-lo em sua história de maneira que você se identifique profundamente com o personagem. Identificar-se talvez seja pouco. Para que você sinta o que o personagem sente. Com este livro, eu espero que você sinta. Espero, sinceramente, que eu tenha sido habilidoso o bastante para você sentir tanto a tristeza de ser rechaçado na festa de uma menina branca rica, quando a epifania de se deparar com o som de Mano Brown quando você é apenas um negrinho revirando besouros em frente à calçada de sua casa.

"Alê se olha no 'espelho' e se enxerga nos seus e nas suas, principalmente na potência. (...) Nosso autor nos convida, com muita generosidade, a sermos leões protagonistas da nossa própria história, porque modelos para nos inspirar nós temos. E muitos!"
Rodrigo França, escritor, dramaturgo, ator

Eu desejo, com este livro, que você sinta, com a clareza de gomos de laranja translúcidos erguidos ao sol, a alegria de uma tarde quente com crianças fazendo guerra d'água com as mangueiras acionadas ao máximo, irritando suas mães que estenderam cadeiras de praia na calçada para tentarem aproveitar um domingo regado a churrasco e ao samba de Leci Brandão.

E, sim, é claro, eu desejo que você sinta, como eu senti, a emoção de ser contemporâneo de um ator preocupado em realizar "histórias para contar sobre os negros que queremos que o mundo veja". Eu estou falando de Chadwick Boseman, é claro, um homem que tinha tantas histórias para contar e não teve tempo para fazê-lo, mas que por meio das suas atuações engrandeceu as pessoas negras em cada um dos papéis que protagonizou.

Como um escritor e criador de conteúdo que faz intercâmbio com a cultura pop e seus signos, buscando apresentar os ícones que representam e engrandecem a cultura negra, eu vivo em busca constante de personagens representativos e de formas de como deixar clara a importância de contar suas histórias.

No livro A Cultura da Mídia, de Douglas Kellner, há uma passagem do autor que diz: “a cultura veiculada pela mídia, cujas imagens, sons e espetáculos ajudam a urdir o tecido da vida cotidiana, modelando opiniões políticas e comportamentos sociais, e fornecendo o material com que as pessoas forjam sua identidade”.

Ou seja, a identidade de uma nação também é forjada pelas mídias, plataformas de conteúdo e representações imagéticas capazes de fornecer os modelos daquilo o que significa ser uma pessoa negra. É através desta cultura de mídia que também é construído nosso senso de classe, etnia, justiça e igualdade.

Não é preciso ser um gênio para entender como a cultura pop é fundamental para isso. É por isso que eu amo a cultura pop e vivo e potencializo a cultura pop no Omelete: por que é através dela que construímos narrativas. E as narrativas podem ser aquelas que engrandecem a humanidade.

Negros Gigantes é meu quarto livro solo. Mas é o primeiro com este objetivo tão nítido: que você, leitor, possa sentir a transcendência.

Sinta a transcendência possibilitada pela cultura negra. Ela pode estar em um verso de Leci Brandão, num flow do Emicida, em um parágrafo da Conceição Evaristo, numa cena da Ruth de Souza, em um manifesto de Martin Luther King, em meia página de James Baldwin, numa rima de Sabotage, em apenas uma frase de Toni Morrison, em um personagem de Lázaro Ramos, no olhar de Chadwick Boseman, nas palavras de Mano Brown ou em um agudo de Elza Soares. Ela vai estar nas diversas manifestações criadas e eternizadas por negros que conseguiram fugir da zona da invisibilidade onde na maioria das vezes querem nos colocar.

Não se acanhe de nomear as manifestações destes negros gigantes da maneira correta: o nome disso é excelência pura.

Negro Gigantes
Alê Garcia
Editora Latitude
ISBN: 978-65-89275-26-8
Páginas: 288
Preço: R$ 64,90
Saiba mais: negrosgigantes.com

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