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O homem é senhor de sua sorte!
Assim se poderia resumir a mensagem de praticamente todas as histórias de uma das personagens mais fascinantes dos quadrinhos de aventura, o misterioso Corto Maltese, bolado em 1967 pelo quadrinhista italiano Hugo Pratt, cuja vida foi provavelmente tão fascinante quanto à de sua criatura mais famosa.
Corto surgiu na revista italiana Sgt. Kirk, produzida por Hugo Pratt em 1967, juntamente com o promotor imobiliário Fiorenzo Ivaldi, com o intuito de divulgar, em seu país, os trabalhos que autor havia realizado na Argentina. O herói surgiu de repente no início da história intitulada Una ballata del mare sallato, crucificado em uma prancha de madeira, depois de ter sido abandonado pelos marinheiros de seu navio, que se haviam amotinado. Era, então, na trama, o dia 1o. de novembro de 1913. Ele entrava na vida dos leitores praticamente no meio de sua jornada nos quadrinhos, tendo sua juventude posteriormente contada em aventuras que se seguiriam à primeira.
Desde o início, Una balllata del mare sallato surpreende por sua vitalidade em termos de transmissão de emoções e sentimentos, atingindo limites que poucas HQs conseguiram atingir. É tanto uma ode à liberdade individual como uma elegia ao próprio mar, esse eterno desconhecido. A série é repleta de quadros que retratam com maestria a imensidão e o encanto do oceano, retomando caminhos traçados antes por gigantes da literatura como Melville, Conrad, Stevenson, London, entre outros, que escolheram o mar como o ambiente de suas obras ficcionais. Talvez por isso, agrada a leitores em todas as partes do mundo, tendo sua qualidade reconhecida por um grande número de respeitados intelectuais, como Arturo Pérez-Reverte e Umberto Eco, bem como pela totalidade dos autores de quadrinhos (Frank Miller, inclusive, chega a lhe fazer uma homenagem em The Dark Knight returns...).
A linha do destino
Corto Maltese, o protagonista, é um cavaleiro da fortuna à moda antiga, uma anarquista, talvez o último dos românticos. Um homem em busca de aventuras, sempre partindo, sempre em viagem. Nascido na ilha de Malta, é filho de uma cigana andalusa e de um marinheiro inglês. Em suas peregrinações, conhece muitos lugares diferentes, encontra os mais variados tipos de figuras humanas, mas mantém-se sempre fiel a seus ideais. A sua história pessoal, ele a faz a cada passo, negando-se a ser um joguete das circunstâncias, a ser controlado pelos acontecimentos. Isso é evidenciado desde sua infância, quando, como nos conta ele mesmo, ao saber por sua mãe cigana que sua mão não possuía uma linha do destino, resolve modificar este fato por conta própria: com a navalha de seu pai, traça uma linha em sua mão e simbolicamente, em meio ao sangue que dali escorre, estabelece a sua filosofia de vida, à qual se manterá fiel durante todas as aventuras que se sucederão à primeira. E foram muitas, embora nem tantas quanto seus admiradores certamente gostariam.
Sem dúvida, a grande figura das aventuras de Corto Maltese é ele mesmo. Perante ela, todos as outras têm sua luz esmaecida, ainda que tenham atrativos próprios e garantam, juntamente com o protagonista, o brilhantismo de uma obra-prima da linguagem em quadrinhos. Alto, esguio, sempre vestido com uma capa escura de marinheiro à qual acompanha o quepe branco com a aba inclinada sobre os olhos, o cabelo negro e a pele morena, certamente recebida da mãe cigana, que também o influenciou no uso de um brinco largo e arredondado na orelha direita. Todo o conjunto lhe dá o ar romântico de um pirata, fazendo com que adquira as dimensões de um mito.
Fascínio pelo mar
De uma certa forma, as outras personagens comungam a fascinação do herói pelo mar e pela vida de riscos, desde o Capitão Rasputin, sempre em posição dúbia, às vezes inimigo, às vezes aliado (quando conveniente para ambos), ao misterioso Monge, que domina os mares do sul a partir da fascinante Ilha de Escondida (169 graus de longitude oeste e 19 graus de latitude sul). Para não falar das mulheres que Corto encontra em seu caminho, cada uma mais fascinante que a outra: a loura e aristocrática Pandora Groovesnore, a quem ele levará sempre na lembrança e por quem parece ter um carinho especial, talvez amor, a primeira a quem os leitores são apresentados, quando, juntamente com seu primo Cain, é refém de Rasputin; Bocca Dorata, a esotérica e mágica amiga brasileira do herói e sua discípula, Morgana Bantam, não menos interessante que a mestra; Veneciana Stevenson, aventureira e assassina sem compaixão; a Duquesa Marina Seminova, aristocrata e cativante, centrada em si mesma, que viaja pela Sibéria em um trem blindado; Shangai Lil, a jovem ativista da seita dos Lanternas Vermelhas, entre outras. Em suas andanças, Corto também encontra diversas figuras históricos, como Jack London, John Reed (cuja vida salva durante um motim), Stalin (que lhe salva a vida), o Barão Vermelho, Butch Cassidy, Sundance Kid e Herman Hesse.
Criador e criatura, os últimos aventureiros românticos
As aventuras de Corto Maltese ocorrem em praticamente todos os quadrantes do mundo, desde a esplendorosa Veneza (Favola di Venezia), terra natal do autor, até os confins da Sibéria (Corte sconta detta arcana), passando pela costa brasileira (Sotto el signo del capricórnio); o monumento de Stonehenge, na Inglaterra (Le celtique); a Somália britânica (Le etiopiche); a Argentina (Tango), e terminando, finalmente, em solo espanhol, ao final da década de 30, quando presumivelmente desaparece lutando nas Brigadas Internacionais (uma história não narrada graficamente). Seu desaparecimento constitui matéria para divergência, pois já na sua primeira aparição, em Uma ballata del mare salato, em uma carta datada de 1965, assinada por Pandora Groovestore, esta comenta que o protagonista vive na costa inglesa, sendo uma espécie de tio para seus filhos. Um final misterioso, envolto nas brumas do mistério, como convém ao último dos aventureiros românticos. Ou ao penúltimo, pois seu autor, Hugo Pratt, talvez merecesse esse título.
Pratt também teve uma vida cheia de aventuras e conheceu as mais diversas partes do mundo. Desde cedo na vida, depois de passar a infância em Veneza, acompanhou seus pais à Etiópia, envolvendo-se com a cultura e os diversos idiomas ali falados. Com um jovem etíope, empregado da família, aprendeu a falar abissínio e swahili, iniciando-se nas tradições do país. Em 1941, foi feito prisioneiro durante a repressão aos grupos que lutavam pela independência do país e repatriado à Itália; em Veneza, três anos depois, nova prisão, desta vez pela SS alemã, de quem posteriormente escapou para se unir às tropas aliadas, nas quais passou a trabalhar como intérprete e organizador de espetáculos para os soldados.
Ao final da Guerra, começou sua carreira como desenhista de histórias em quadrinhos para a revista Albo Uragano, fazendo parte do Grupo de Veneza, composto também por Alberto Ongaro, Fernando Carcupino, Bellavitis, Ivo Pavone, Paolo Campani, Rinaldo DAmi e Dino Battaglia. Influenciado pelo desenho de Milton Caniff, de quem sempre foi um admirador confesso, realizou seus primeiros quadrinhos e criou a representação visual de Asso di Piche, um jornalista que, à noite, se dedicava à combater as injustiças na cidade de Nova York, idealizado pelo roteirista Alberto Ongaro, além de outros trabalhos menores.
Volta ao mundo
Em 1949, com a maioria dos autores do Grupo de Veneza, imigrou para a Argentina, país em que foi trabalhar durante mais de uma década, fazendo uma profícua parceria com o grande roteirista Hértor Oesterheld, parceria esta que deu gerou frutos memoráveis, como o Sargento Kirk (1953), Ticonderoga (1957) e Ernie Pike (1957). Em solo argentino produziu também suas primeiras obras solo: Ana de la Jungla (1959), El Capitán Cormorant (1962) e Wheeling (1962).
Depois de uma breve estadia na Inglaterra (onde desenho histórias de guerra para a Fleetway Publications) e no Brasil (onde colaborou com Enrique Lipszyc na criação da Escola Panamericana de Arte), regressou à Itália, onde fundou a já mencionada revista Sgt. Kirk, na qual iria surgir Corto Maltese. Depois disso, basicamente dedicou-se a essa personagem, para quem produziu muitas histórias, divulgadas inicialmente em revistas conceituadas como Pif Gadget, Linus, Europeo, A Suivre e Corto Maltese, e que foram posteriormente lançadas em álbuns luxuosos (incluindo, além dos já mencionados anteriormente, também Corto toujours um peu plus loin, de 1970; La casa dorata di Samarcanda, de 1980; La giovinezza, de 1981-1982; Elvetiche - Rosa Alchemica, de 1987 e Um, de 1988-1991). Fora do universo de Corto Maltese, ainda que não tão distante dele, Pratt produziu a série Gli scorpioni del deserto, também de grande sucesso.
Outras mídias
Hugo Pratt faleceu em 1995, na Suiça, aclamado como um dos maiores autores das histórias em quadrinhos de todo o mundo. Felizmente, sua obra artística permanece, sendo continuamente republicada em todas as partes do mundo e ampliando sua área de influência também para outras mídias. Infelizmente, o mestre não pode testemunhar a passagem de seu maior herói para o campo da animação, na produção francesa Corto Maltese, la cour secrète dês arcanes, baseada em um de seus álbuns.
A odisséia do último herói romântico parece longe de seu final.
Leia a resenha do filme de Corto Maltese.Leia mais artigos da série Era uma vez nos quadrinhos. Clique aqui.
Leituras recomendadas:
La Web de Corto Maltés. Disponível em: http://www.dreamers.com/corto/index.htm
L´Univers de Hugo Pratt. Paris : Dargaud Editeur,
c1984.
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