Gibitecas brasileiras: Um espaço para sonhos
Gibitecas brasileiras: Um espaço para sonhos
![]() A Gibiteca de Curitiba |
![]() Logo da Gibiteca Henfil |
No caso das universidades, a exclusão dos quadrinhos ocorreu em função de sua presumida falta de importância como objeto de estudo científico: raríssimos pesquisadores os viam como dignos de sua atenção, o que barrava sua entrada nas bibliotecas universitárias e de pesquisa. Por outro lado, no âmbito das instituições de informação dirigidas ao público em geral e naquelas que visavam apoiar o processo educativo básico e secundário – as bibliotecas públicas e as poucas bibliotecas escolares existentes no país -, seu ingresso foi vetado pelo enorme estardalhaço que seus opositores costumavam fazer com regularidade contra elas, manifestando-se, às vezes de maneira agressiva, à mais remota possibilidade de colocá-los à disposição do público por intermédio de instituições culturais mantidas pelos cofres governamentais.
No entanto, falar da oposição da sociedade não é o suficiente para explicar o afastamento das histórias em quadrinhos do acervo das bibliotecas brasileiras. É preciso também atentar que os responsáveis por essas instituições, que talvez pudessem ter exercido influência decisiva para reverter esse fato, também não estiveram neutros no processo. Algumas vezes de maneira deliberada e consciente, outras por simples inércia, os responsáveis pelas bibliotecas se recusaram a selecionar e disponibilizar os quadrinhos por entenderem que eles não se adequavam aos critérios de qualidade definidos para seus acervos. Ainda que esses profissionais não estivessem mal intencionados e que em sua defesa se possa afirmar que eles também eram tão influenciados pelas idéias dominantes na sociedade quanto às pessoas a que serviam, é possível pelo menos acusá-los de estar equivocados em suas premissas e de pouco terem se preocupado em contrastá-las com a realidade.
As resistências de educadores, pais e bibliotecários às histórias em quadrinhos e aos demais meios de comunicação de massa diminuíram à medida que a sociedade passou a ver todos esses meios com outros olhos. Entretanto, as barreiras contra elas, enquanto alternativas de leitura e informação diferentes do livro tradicional, não desapareceram de forma automática. Mesmo hoje, seria temeridade afirmar que as revistas e outras modalidades de histórias em quadrinhos já podem ser facilmente encontradas nas bibliotecas brasileiras. Infelizmente, aquelas instituições que as incorporam cotidianamente a seus acervos constituem muito mais a exceção do que a regra do cenário nacional. E, mesmo no caso dessas exceções, pode ainda acontecer que os quadrinhos recebam um “tratamento” diferenciado, discriminatório mesmo, em relação a outros materiais: não são incorporados de forma definitiva ao acervo, sendo vistos como material totalmente descartável; enfrentam total despreocupação com o estabelecimento de critérios objetivos para sua seleção, todos os produtos quadrinhísticos sendo encarados essencialmente iguais entre si; restrições financeiras para sua aquisição em base regular, não destinando qualquer verba para compra de revistas ou álbuns de quadrinhos e considerando-os como alternativa para o acervo apenas quando oferecidos em doação, sem ônus institucional direto (aplicando a eles a velha máxima: “de graça, até injeção na testa”...); destinação dos quadrinhos apenas para uso de categorias específicas de usuários, como crianças ou estudantes de primeiro e segundo graus; utilização das histórias em quadrinhos como chamariz para a leitura de livros, uma espécie de concessão dos profissionais do livro a uma leitura menos nobre. E essas são apenas algumas das desventuras que as histórias em quadrinhos podem eventualmente enfrentar...
Felizmente, essa situação vem aos poucos se modificando, tanto no Brasil como no exterior. Modifica-se em ritmo mais lento que o desejado, é verdade. O número de bibliotecas que hoje encaram as histórias em quadrinhos como materiais a compor uma coleção especial de seu acervo, ainda é bem menor do que o necessário para se atingir uma reviravolta em termos de mudança de postura, mas vem crescendo paulatinamente.
Nos Estados Unidos, como lembra Randall W. Scott em seu livro Comics librarianship: a handbook (Jefferson : McFarland, 1990), várias bibliotecas universitárias possuem coleções especializadas de quadrinhos, entre as quais podem ser destacadas as das universidades de Ohio, Michigan, Bowling Green e Kent. Embora o Brasil tenha sido o primeiro país a introduzir uma disciplina específica sobre o tema em curso de graduação (na Universidade de Brasília, na década de 70) e a organizar um curso de especialização sobre esse assunto (na Universidade de São Paulo, já nos anos 90), ainda se conta nos dedos de uma única mão as universidades que os preservam em suas bibliotecas. Em São Paulo, o Núcleo de Pesquisas de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP (conheça aqui) tem hoje um acervo com quase seis mil revistas, destinado a dar suporte aos trabalhos de seus pesquisadores e alunos.
Entretanto, no âmbito das bibliotecas públicas, a situação já é um pouco diferente, tendendo favoravelmente para o lado brasileiro, principalmente com o advento e atuação das chamadas gibitecas.
Aparecimento, evolução e atuação das gibitecas no Brasil
De uma certa forma, pode-se dizer que bibliotecas especialmente dedicadas à coleta, armazenamento e disseminação de histórias em quadrinhos eram totalmente impensáveis até bem pouco tempo atrás. No Brasil, no entanto, essa idéia deixou o campo do absurdo e tornou-se uma realidade já no início da década de 80, quando uma instituição pública na capital do Estado do Paraná decidiu fundar a primeira biblioteca desse tipo, que batizou com o nome de gibiteca, com isso criando um neologismo derivado da forma como as revistas de histórias em quadrinhos são tradicional e carinhosamente referidas no país (gibis). Assim, com o surgimento da Gibiteca de Curitiba, cunhou-se o termo genérico para denominar qualquer biblioteca que coloque as histórias em quadrinhos como o centro de sua prática enquanto serviço de informação. O temo passou, a partir de então, a ser utilizado em todo o país.
Durante um bom tempo, a Gibiteca de Curitiba constituiu uma iniciativa isolada, fruto do interesse de um grupo de idealistas e amantes das histórias em quadrinhos. Rapidamente, ela se tornou o ponto central de uma intensa atividade, indo muito além de uma coleção especializada. Em torno dela foi - e continua a ser realizado - um crescente número de exposições, cursos sobre quadrinhos e como fazê-los profissionalmente, palestras e atividades das mais variadas que buscam dar às histórias em quadrinhos um status privilegiado dentre os diversos meios de comunicação de massa.
Aos poucos, talvez em função do sucesso da Gibiteca de Curitiba, ou mesmo por pressão dos usuários, alguns responsáveis por bibliotecas públicas no país também começaram a criar espaços específicos para elas. Na maioria das vezes, constituíram iniciativas isoladas de profissionais que encaravam os quadrinhos de uma maneira diferente da de seus colegas, tendo sempre se interessado por essa questão. Algumas delas viriam, posteriormente, a criar gibitecas.
No entanto, a primeira gibiteca brasileira a surgir dentro de um serviço de biblioteca pública, a partir de iniciativa da própria administração governamental, foi a Gibiteca Henfil, órgão do Departamento de Bibliotecas Infanto-Juvenis da Secretaria de Cultura do município de São Paulo, inaugurada em 1991. Além de possuir um vasto acervo, essa Gibiteca foi sempre responsável por um dos maiores índices de freqüência das bibliotecas públicas da cidade de São Paulo, buscando se colocar, também, como um grande centro de eventos relacionados com os quadrinhos, promovendo cursos, exposições, palestras, debates e lançamentos de novas obras e servindo como ponto de encontro para reuniões de leitores e de associações de quadrinhistas.
Ao se pensar na especificidade das Gibitecas brasileiras, é importante lembrar que elas não se contentaram em apenas armazenar revistas e álbuns, mas buscaram atuar intensamente na divulgação dos quadrinhos, transformando-se em verdadeiros centros de cultura e produção na área.

