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Um cão ama uma gata que ama um rato que se diverte atirando tijolos na cabeça da gata e, em represália, é preso pelo cão, mas isso só faz com que a gata fique ainda mais apaixonada pelo rato, que jamais se emenda.
Nesta pequena descrição, quase drummondiana, está resumida toda a trama de Krazy Kat, uma das histórias em quadrinhos mais geniais do mundo - algo surpreendente já que o tema não é nada natural. O esperado seria o cão perseguir a gata, que, por sua vez, correria atrás do rato, não para acariciá-lo, mas com intuitos mais nefastos. Afinal, é essa a fórmula consagrada pelas diversas duplas de gato/rato ou cachorro/gato que povoam os quadrinhos e os desenhos animados. Tom & Jerry são apenas o exemplo mais óbvio.
No caso de Krazy Kat, forma-se um triângulo amoroso às avessas, principalmente em relação à personagem felina, que é o ponto focal da tira. Essa gata é louca, diriam os mais conservadores. Exatamente: louca, ou crazy, para sermos mais pedantes - Krazy Kat!
Sucesso ao acaso
A tira surgiu quase por acaso nas páginas diárias dos jornais de Nova Iorque. Havia um espaço vago abaixo dos quadrinhos que compunham a série The Dingbat Family, posteriormente denominada The family upstairs, e seu autor, George Herriman, resolveu ocupá-lo com pequenas gags envolvendo a gata da família. Era, então, junho de 1910. Um mês depois, apareceria um rato que atiraria um tijolo na gata . A partir daí, teve início uma agressiva perseguição que duraria mais de três décadas e encantaria os leitores, a começar por William Randolph Hearst, proprietário do Morning Journal e criador do King Features Syndicate. Foi este magnata quem sempre insistiu na manutenção da série em seus jornais, embora ela nem sempre representasse lucro para suas empresas. Sorte de seu criador - Herriman - que teve um espaço privilegiado para desenvolver uma das tiras mais pessoais de todos tempos. Sorte também desse meio de comunicação, que, graças a ele, atingiu pináculos artísticos jamais alçados. Sorte maior ainda de nós, leitores. Quer prova melhor de que Deus existe?
Exceto por cerca de quinze dias, quando foi publicada deforma independente, Krazy Kat permaneceu como apêndice de The family uspstairs até 1913. A partir desta data, começou a ser veiculada em separado, a princípio como tira diária vertical. Três anos mais tarde, devido ao sucesso, decidiu-se pela inclusão, no New York Journal, de uma página dominical dedicada à personagem. Dava-se início, então, à sua melhor fase estética. Foi quando o aspecto surrealista da obra de George Herriman atingiu seu clímax.
Sexo indefinido
Já houve muita polêmica em relação ao sexo da protagonista. A termo inglês cat não garante uma definição imediata como ocorre em outros idiomas. Javier Coma, conceituado pesquisador espanhol, tentou esclarecer essa dúvida. Ele identificou ocasiões em que a feminilidade de Krazy é inquestionável. Herriman, maliciosamente porém, referiu-se à sua protagonista como ele ou ela indiscriminadamente no decorrer dos anos. Para aumentar a controvérsia, chegou a confessar que a via como um espírito assexuado. Mesmo assim, Coma defende seu ponto de vista indicando um episódio de 1910, praticamente no início da tira, quando o autor ainda não havia realizado seus mais notáveis mergulhos metafísicos. Em dado momento, a gata aparece rodeada de gatinhos e chama a si mesma de mãe. Há ainda outra cena, de 1936, no auge de seu processo criativo, em que a gata aparece vestida apenas com um folha de parreira, personificando Eva, a primeira mulher. Assim, segundo esse estudioso, parece ser quase obrigatória a opção pela feminilidade, ainda que ele admita que vários exemplos contrários à sua tese também possam ser destacados. Se Coma estiver equivocado, então, o triângulo amoroso é abertamente homossexual. Afinal, o rato Ignatz pertence, com certeza, ao sexo masculino, pois tem até esposa, Mizzuz Mice, que aparecia ocasionalmente. Para a mentalidade da época, talvez esta opção seja um pouco exagerada, embora acrescente um tom mais lírico à personagem. A androginia, tradicionalmente, tem um inegável aspecto poético.
Escapada surrealista e nonsense
Dos três animais, Ofissa Pupp, o cão, foi o último a ser desenvolvido, surgindo aos poucos na tira. O rato Ignatz e Krazy Kat lá estão desde o início, estrelando essa história de amor não correspondido aparentemente simples, mas de enorme complexidade temática. Como diz Robert C. Harvey, Krazy Kat não trata apenas do triunfo do amor, mas muito mais do insaciável desejo de amar e ser amado.
Aos poucos, as histórias desse grupo de funny animals deixaram de se situar no contexto fechado de um apartamento e passaram a transcorrer em um espaço privilegiado, o Monument Valley no condado de Coconino, estado do Arizona. Era um ambiente mais apropriado, por suas paisagens desérticas, para as escapadas surrealistas a que o autor viria a se dedicar em muitas oportunidades. Servia tanto para destacar a solidão dos personagens quanto para possibilitar explorações paisagísticas que se tornaram marca registrada dessa HQ. Vale ressaltar que esse deserto realmente existe, tendo sido um dos locais preferidos do autor para passar as férias.
Outro destaque de Krazy Kat é a linguagem utilizada pelas personagens, principalmente a protagonista, trazendo um aspecto de nonsense à trama. Ela se comunica utilizando uma mistura de vários dialetos étnicos, que vão desde o linguajar dos judeus novaiorquinos até o sotaque mexicano, combinados com anacronismos e metáforas. O próprio nome escolhido para o cão, Ofissa Pupp, é uma corruptela de Officer Pupp (Policial Pupp), no curioso palavreado da gata. Originalmente, inclusive, Ignatz começou a lhe atirar tijolos em virtude de suas ambigüidades de fala. Seguindo ainda a idéia do nonsense, era como se ele estivesse atirando tortas ao rosto. Puro vaudeville.
Explorando a linguagem dos quadrinhos
A história dos três animais não se destaca apenas quanto ao enredo, ao qual a recorrência do tema confere genialidade. Embora pareça, em um primeiro momento, singelo, o estilo gráfico de Herriman tem características próprias. Com o passar dos anos, o autor introduziu aspectos de exploração da linguagem dos quadrinhos, que só encontraram rival em Little Nemo in Slumberland, de Winsor McCay. Em Krazy Kat, principalmente nas páginas dominicais, nada era sagrado. Herriman não hesitava em esticar, prensar, utilizar formatos pitorescos ou simplesmente eliminar as bordas convencionais dos quadrinhos, se isto beneficiasse a história. Ao mesmo tempo, ele inovava, conferindo aos personagens a consciência de que eram fictícios. Com freqüência, fazia com que tomassem de um lápis e desenhassem partes de seus próprios corpos. Era uma metalinguagem décadas à frente de sua época, à qual hoje nosso Maurício de Sousa recorre com mestria. Herriman misturava ilusão com realidade, num ambiente metafísico, em que as sombras do deserto lembravam um cenário de sonhos. Em Krazy Kat, tudo estava em contínua metamorfose.
Um desenhista negro
Embora tenha alcançado fama e sucesso como o criador desta série, Herriman teve um currículo extenso. Em mais de 40 anos, foi responsável por muitas personagens, como Musical Mose, Professor Oto and His Auto, Acrobatic Archie, The Jolly Jackies, Major Ozones Fresh Air Crusade. Durante o tempo em que produziu Krazy Kat, também se dedicou a outras histórias. Todas elas, no entanto, empalidecem ante sua criação maior.
Foi também um dos primeiros desenhistas negros do meio. Daí muitos estudiosos identificarem neste fato a razão da ambigüidade de sua protagonista. Outros insistem que, não por acaso, ele a retratou como uma gata negra. Os tijolos que lhe são atirados personificariam, então, toda uma revolta contra os preconceitos e perseguições raciais. A idéia tem algum fundamente, mas uma explicação dessas restringiria demais a riqueza de Krazy Kat.
O fim com a morte do autor
Herriman faleceu em 1944. Após sua morte, a série foi descontinuada, dizem que por decisão pessoal de Hearst. O magnata não acreditava que outro autor pudesse manter o ritmo criativo do original. É bem provável. Dificilmente alguém conseguiria reproduzir o mesmo lirismo ou singeleza de Herriman e realizar seus vôos estilísticos. O fato de a série já não contar, naquele momento, com grande apelo popular, sendo publicada apenas em poucos jornais, também deve ter colaborado para a decisão de interrompê-la. Essa, no entanto, não foi a versão consagrada pela História. No caso de Krazy Kat, a lenda tornou-se maior do que os fatos.
De qualquer modo, a aceitação dessa versão romantizada para o fim da tira é bem plausível. Tivesse ela continuado, provavelmente decairia em qualidade e ficaria na memória dos leitores como uma caricatura da verdadeira. Se a indústria insistisse em manter seu esquema normal de produção, substituindo o artista original por um de seus assalariados, provavelmente menos talentosos, Krazy Kat não teria a importância que tem hoje. Tampouco teria obtido o primeiro lugar entre as cem melhores histórias em quadrinhos de língua inglesa, em votação realizada pela conceituada revista Comics Journal no início de 1999. Nesta eleição, participaram especialistas, profissionais da área e os próprios editores do magazine. Uma colocação bem-merecida para uma obra que foi muito mais do que uma historinha de animais. Era pura poesia em imagens. Da melhor já feita.
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