Bud Fischer e Mutt and Jeff
Bud Fischer e Mutt and Jeff
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São famosas as duplas de protagonistas na literatura, no cinema e nos quadrinhos. Via de regra, elas surgem em virtude de os autores buscarem contrabalançar dois tipos de personalidades diferentes, de forma a que uma traga destaque à outra. Assim, no campo da literatura policial, à mente brilhante de um Sherlock Holmes seu autor contrapôs a obtusidade de um Dr. Watson, para ficar apenas no exemplo mais famoso, modelo de tantas outras criações, no qual os extremos se encontram demonstrados da forma mais magistral possível.
Ao justapor personalidades opostas, os autores em geral conseguem, ainda que indiretamente, criar uma terceira entidade. Nasce outra maneira de ser, como se as duas formas anteriores de ver o mundo se complementassem, colaborando na construção de um propósito único. Juntas, transformam-se quase que em uma terceira personagem. Desta forma, nos casos em que este amálgama ocorre com sucesso, torna-se difícil enxergar isoladamente os dois protagonistas. E isto vai acontecer inclusive em outras áreas artísticas, como no cinema, arte na qual é impossível pensar em Stan Laurel sem lhe agregar seu complemento também afamado, Oliver Hardy. É também o que ocorre, nas histórias em quadrinhos, com Mutt e Jeff.
À última dupla, embora atendam a todos os requisitos acima arrolados, não se dá destaque, nos quadrinhos, apenas pela distinção enquanto personagens complementares; muito mais do que isso, ambos se destacam como os protagonistas de uma modalidade narrativa que, a partir de sua criação, atingiu estrondoso sucesso de público, colaborando para redirecionar os rumos das histórias em quadrinhos: a tira diária.
TIRAS TODO DIA
De fato, ao surgir, em novembro de 1907, a série Mr. A. Mutts Starts in to Play the Races, título que primeiramente tiveram os quadrinhos das duas personagens, a publicação de tiras diárias não era absolutamente uma prática comum aos jornais norte-americanos. Naquela época, predominavam os quadrinhos dominicais, como o Little Nemo in Slumberland, de Winsor McCay, publicados em grandes pranchas coloridas e direcionados ao público infantil, e aqueles publicados nos dias de semana, normalmente um aglomerado de histórias aleatoriamente agrupadas e sem periodicidade fixa, destinados ao público adulto.
Na primeira década do século 20, ninguém sequer imaginava que as histórias em quadrinhos poderiam ser publicadas em tiras horizontais, com periodicidade diária. E menos, ainda, que elas viriam a representar o espaço privilegiado de publicação de histórias em quadrinhos nas próximas quatro décadas.
Antes do aparecimento da série, haviam existido algumas poucas tentativas de manutenção de uma criação em quadrinhos que aparecesse diariamente nos jornais. A história registra com destaque, nesse quesito, a obra de Clare Briggs, A. Piker Clerk, surgida em 1903 e publicada no Chicago American, jornal de propriedade da cadeia de William Randolph Hearst. No entanto, a tira de Briggs manteve essa periodicidade apenas durante algumas poucas semanas, passando depois a ser publicada esporadicamente. Sorte parecida tiveram todas as outras tentativas.
No entanto, embora não sendo bem sucedida em seus objetivos, tudo indica que foi a série de Briggs a trazer inspiração para Harry Conway Bud Fisher, um desenhista então iniciante na seção de esportes do jornal San Francisco Chronicle, criar uma personagem que, tal como o senhor A. Piker, tinha uma compulsiva necessidade de apostar nas corridas de cavalos, diariamente. Para tanto, o jogador compulsivo inspirava-se em fatos corriqueiros ou enfrentava mil e um contratempos para realizar sua aposta. E A. Mutt (o A. correspondendo a Augustus) atendia perfeitamente a essa descrição.
Em seus primeiros tempos, as anedotas criadas em torno do protagonista e seu vício foram muitas e variadas: uma ocasião, após atirar-se à água para salvar uma mulher que se afogava e ouvir sua expressão de gratidão, Mutt a abandona ainda antes de completado o salvamento, para realizar uma aposta no cavalo Thanks Be; da mesma forma, ao se restabelecer de um ataque cardíaco (causado por uma aposta perdida), foge do hospital ao ouvir o doutor lhe receitar ar marinho como medida de restabelecimento: Sea Air corria no páreo daquele dia e Mutt não podia deixar de arriscar um palpite...
FORMA-SE A DUPLA
Mr. A. Mutt reinou absoluto na série durante os cinco primeiros meses de publicação, praticamente sem qualquer acompanhante fixo com o qual dividir as gags diárias. Entretanto, ao final de março de 1908, o parceiro definitivo de Mutt surgiu. Apareceu mais ou menos por acaso, como aconteceu com tantos outras personagens do mundo dos quadrinhos (basta, para isso, lembrarmo-nos de Popeye e Captain Cesar, para citar apenas dois...). Ao ser internado em um asilo de loucos por suspeita de sua vontade de apostar em cavalos ter origem em algum distúrbio mental, Mutt ali encontrou Jeff, um dos internos daquela instituição. Não se imaginava, então, que a novo personagem retornaria cada vez com mais freqüência nos meses seguintes à tira, até passar, dois anos depois, a dividir o estrelato com o protagonista original.
No que diz respeito ao aspecto físico, Jeff é exatamente o oposto de Mutt: enquanto o segundo é alto e cabeludo, o primeiro é baixo e careca. Mas a diferença não para aí, a justaposição temática indo muito mais além na composição da dupla. Se Mutt é retratado como o homem prático, materialista ao extremo, que passa a vida engendrando esquemas para rapidamente enriquecer, Jeff é a inocência personificada que paira acima de todas as exigências materiais. Ele ainda que inadvertidamente, sempre faz soçobrar os planos do amigo. Mais ou menos, como bem conhecem as crianças brasileiras, o que acontece com o Cascão, que sempre compromete os planos infalíveis do Cebolinha para derrotar a Mônica...
LONGEVIDADE
Pouco mais de um ano após sua chegada, Jeff já havia se tornado indispensável ao humor da tira, fazendo com que esta deixasse, em definitivo, a temática da piada sempre retomada - a idéia genial do cavalo vencedor do próximo páreo, a corrida para o guichê de apostas e o resultado esperado/conhecido, ao que se segue uma nova aposta... e assim por diante, indefinidamente - para ingressar em pura comédia vaudeville, com pastelão e tudo. Ao final de cada plano fracassado, Jeff normalmente transformava-se em alvo da cólera de Mutt, recebendo socos, pontapés, tortas na cara, etc
Com a complementação definitiva da dupla Mutt e Jeff, a tira tornou-se um sucesso estrondoso. Logo, foi publicada na forma de coletânea (algo que muitos autores identificam como o primeiro comic book), transformando-se em produtos de consumo dos mais diversos e sendo levada, em 1916, às telas de cinema como desenho animado. Foram mais de 300 cartoons produzidos pelos Raoul Barre-Charles Bower Studios. Tudo isso garantiu-lhe uma longevidade invejável nos quadrinhos, tendo sido publicada durante mais de 75 anos, um terço dos quais sem a presença física de seu autor, que faleceu em 1954.

MANOBRA RECAMBOLESCA
Na realidade, a Bud Fisher a série de Mutt e Jeff deve principalmente a idéia original e a introdução dos protagonistas. Durante a maior parte de sua existência, ela esteve nas mãos dos auxiliares do autor, como Ed Mack (1918-1932) e Al Smith (1932-1981), a este último talvez se devendo conceder o crédito maior por seu continuado sucesso editorial. No entanto, isto não diminui a importância de Bud Fisher para a história dos quadrinhos. Mais que seu trabalho artístico, sua atuação profissional representou um elemento de afirmação na luta dos quadrinhistas por seus direitos e pelo reconhecimento de seu espaço enquanto produtores de uma original forma de arte.
Além de estabelecer a tira diária, Fisher também é lembrado como um dos autores que melhor defendeu sua criação em quadrinhos, motivo pelo qual, inclusive, tornou-se literalmente milionário pelos frutos de seu trabalho. Já em 1907, ao deixar o Chronicle para trabalhar no San Francisco Examiner, de William Randolph Hearst, Fisher garantiu seus direitos autorais sobre a obra, numa jogada meio rocambolesca, como relata Robert C. Harvey: De acordo com a prática estabelecida, A.Mutt foi tratado como se fosse propriedade do Chronicle. Os editores simplesmente contrataram outro cartunista (Russ Westover, posteriormente o criador de Tillie the Toiler) para desenhar a tira. Mas, desta vez, a situação era diferente. O presumido direito de posse do jornal sobre a tira foi frustrado por uma manobra esperta de Fisher durante seu último dia de trabalho para o Chronicle. Esperando até que o editor aprovasse a tira do dia, Fisher entrou na sala de impressão e, antes que a placa fosse feita, escreveu Copyright 1907, H. C. Fisher na beirada de sua última tira e subseqüentemente registrou o direito autoral em Washington. O cartunista ameaçou processar, e o Chronicle, convencido, por fim, da legitimidade de seus direitos autorais, parou de publicar a tira em 7 de junho de 1908.
Anos depois, ao deixar a cadeia de jornais de Hearst e ingressar no Wheeler (depois Bell) Syndicate, Fisher chegou realmente a ir aos tribunais, vencendo o grande magnata da imprensa norte-americana e garantindo a posse e exploração comercial de sua criação. Tornou-se, inclusive, o primeiro autor de quadrinhos a possuir legalmente a obra que havia criado. Praticamente a partir deste último embate, Bud Fisher afastou-se da elaboração diária de quadrinhos, contentando-se em supervisionar o trabalho feito por seus assistentes. Jamais deixou, no entanto, de se preocupar em ter seu nome ligado a Mutt and Jeff, buscando sempre identificar-se como seu único responsável. Na época em que foram produzidos desenhos animados sobre as personagens, Fisher fazia questão de omitir, em todas as peças publicitárias, o nome do estúdio que os realizava, exigindo que apenas seu nome constasse dos créditos.

CELEBRIDADE
Bud Fisher foi o primeiro quadrinhista a realmente tornar-se uma celebridade em seu país. No entanto, sua ânsia de lucros e intensa vida social afastaram-no de seus pares, aos quais em geral tratou de forma humilhante e com os quais não mantinha muitos contatos. Ao morrer, aos 70 anos, estava literalmente isolado em seu apartamento na Park Avenue, vivendo apenas de suas lembranças dos tempos áureos, quando cruzava as ruas de Nova Iorque em um Rolls Royce, criava cavalos de corrida e freqüentava os clubes noturnos da cidade com uma beldade pendurada em cada um de seus braços.
Leituras recomendadas
GAUMER, Patrick; MOLITERNI, Claude. Mutt and Jeff. In: --------. Dictionnaire mondiale de la bande dessinée. Paris : Larousse, 1997. p. 458.
HARVEY, Robert C. Establishing the daily comic strip: the thematic choruses of Bud Fisher and George McManus. In: --------. The art of the funnies: an aesthetic history. Jackson : The University of Mississippi Press, 1994. p. 35-59.
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