Jeremias

Créditos da imagem: MSP/Divulgação

HQ/Livros

Artigo

A cor do Nanquim: Uma análise sobre os negros que produzem HQs no Brasil

As dificuldades e o sucesso de alguns dos principais profissionais do país

14.11.2018, às 14H09.
Atualizada em 14.11.2018, ÀS 14H26

Desafios de ponta a ponta marcam o cenário dos quadrinhos nacionais. Mas os entraves - que começam na produção e seguem firmes até a distribuição - ganham tintas ainda mais carregadas quando falamos em profissionais negros, especialmente roteiristas e desenhistas.

As dificuldades, como em outras profissões, começam a ser maiores já na formação, com cursos e materiais caros, além do racismo. Os obstáculos e preconceito seguem no início da carreira e também em áreas como publicidade, usadas muitas vezes pelos quadrinistas como fonte alternativa de renda. E isso para começar com apenas alguns exemplos.

Para o desenhista e ilustrador Jefferson Costa, responsável por obras como La Dansarina, A Dama do Martinelli e Jeremias – Pele, ver menos profissionais negros em feiras de HQs é o resultado de dificuldades que vão se acumulando. “Ser um cidadão negro no Brasil é difícil. Profissões ligadas à arte no Brasil são difíceis. E como, entre as artes, quadrinhos nunca estiveram em alta conta... fica tudo mais difícil”.

Entraves na formação

Ana Cardoso, sócia-diretora do Estúdio Black Ink e autora de We Pet, conta como se sentia inferiorizada por fazer parte de uma dupla minoria - mulher e negra - durante a graduação em artes gráficas pela UFMG. “Eu não só precisava usar ‘carteirinha de nerd’ para provar que entendia de quadrinhos, como era se eu não pertencesse àquele espaço, pois ‘estudar arte nunca foi coisa de preto’”.

Problemas no acesso à formação também foram citados por Péricles Júnior, o PJ, autor de Carnívora e hoje com larga experiência no mercado internacional. Para ele, negros são desencorajados a cursarem graduações na área de artes, seja pelo alto investimento necessário em materiais ou mesmo em aspectos mais subjetivos.

“Demorei a acreditar que este era o meu caminho. Sempre foi posto para mim, por minha cor, crença e posição social, que precisava da estabilidade desde cedo. O tal do emprego bom e boa aparência”.

Trabalho extra

Por ainda ser muito difícil se sustentar trabalhando só com quadrinhos no Brasil, muitos autores procuram outras fontes de renda. E esse cenário também é complicado.

“No mercado publicitário, aconteceu de o contratante pedir uma primeira reunião de pauta presencial e nitidamente se assustar com minha cor. Era como se, por esse detalhe, eu trouxesse um fator complicador para a boa execução do trabalho”, conta Jefferson. Depois disso, ele passou e tratar suas negociações por e-mail, sem nem mesmo reuniões por vídeo.

No entanto, uma vez vencido o racismo na formação e no início de carreira, a maioria dos quadrinistas ouvidos pelo Omelete conta ter encontrado no mundos dos quadrinistas profissionais um ambiente mais acolhedor, sem tantos preconceitos. E isso tanto no Brasil como no exterior.

Mas é claro que mesmo nesse ponto o cenário ainda continua complexo. Segundo Rafael Calça, roteirista de Jockey e co-autor de Jeremias, um dos desafios que surgem nessa fase é a autocobrança excessiva. “Eu tenho uma vontade de me provar mais, justamente por ser negro. Para não ter que passar por nada disso (racismo)".

E os frutos desse esforço extra podem ser vistos em uma excelente produção sobre os mais diferentes temas. Uma produção que gera, inclusive, um questionamento por parte dos próprios quadrinistas: é obrigatório que obras sejam relacionadas a negros e racismo?

Para eles, a resposta é não. Mas esses temas acabam invariavelmente surgindo nas obras desses artistas por ela ser um reflexo da sua realidade. Marcelo D'Salete, mestre em história da arte e autor dos premiados Cumbe (Prêmio Eisner 2018) e Angola Janga (Prêmio Jabuti 2018), percebeu ter uma trajetória diferente dos outros artistas e isso fez com ele contasse histórias do seu entorno nas HQs. “Não é possível entender nossa realidade sem entender as suas partes, suas particularidades negras, periféricas, indígenas, etc.”, explica. Por isso, em suas HQs, há quebras de estereótipo, tornando o conteúdo mais rico, com novas histórias e visões.

Representatividade

Outro ponto fundamental citado por todos os entrevistados é a questão da representatividade que ganhou força no universo das HQs com os super-heróis que foram redesenhados como negros e geraram polêmica. É o caso de Nick Fury, que virou negro nos quadrinhos, Valquíria e Heimdall interpretados nos cinemas pelos negros Tessa Thompson e Idris Elba nos filmes de Thor, e também do Tocha Humana, antes interpretado por Chris Evans, que foi vivido na telona por Michael B. Jordan no último filme do Quarteto Fantástico.

Por mais que fãs mais radicais torçam o nariz para essas mudanças, para os quadrinhistas essa representatividade é essencial. Ana afirma ser importante o leitor negro se identificar nesse universo, até porque um dia essa pessoa poderá se tornar um produtor de conteúdo. "Por que um branco não pode se identificar com um personagem negro, se nós, negros, sempre tivemos que nos identificar com os brancos?"

E Rafael Calça complementa: “Quem não acha representatividade algo necessário, provavelmente não convive com negros, ao menos não em posição de igualdade.”

Contudo, de forma muito ponderada, D'Salete e PJ alertam sobre o que eles classificam como uma representatividade vazia, caça-níqueis e cheia de estereótipos, que não procura saber o que realmente negros, mulheres e gays pensam, mas apenas consolida uma dinâmica de poder e opressão. “Isso é a manutenção das mesmas estruturas de poder ou é o questionamento e a discussão dessas estruturas?”, questiona D'Salete.

Para ele, é preciso tentar pensar esse problema - e outros enfrentados por quadrinistas negros - coletivamente. "Trabalhar dentro do universo da arte é muito desafiador e, quando você faz isso dentro de uma proposta nova, contra hegemônica, fugindo do padrão já estabelecido, provavelmente seus desafios serão ainda maiores".

Tantos entraves que, ao ser questionado se já pensou em desistir de sua carreira, Jefferson responde: “'Todos os dias' é uma resposta ruim?”. Ainda que tenha tentado disfarçar o peso da sua frase com risadas, ela não é uma piada, e provoca reflexão. E por existirem pessoas como esses autores, que diariamente superam o preconceito e essa vontade de jogar tudo pra cima, e seguem fazendo sua arte, que o mercado ficou mais plural e rico. E que venham mais!

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