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A cidade dos patos

A cidade dos patos

CX
30.10.2000, às 00H00.
Atualizada em 19.01.2017, ÀS 05H07
Carl Barks compôs uma das melhores metáforas do Homem presentes na vasta iconografia das Histórias em Quadrinhos. O instável pato vestido de marinheiro, já conhecido das salas de cinema, nas mãos de Barks ganha personalidade, curva dramática e identidade no mundo. Temperamental, perdido entre um tio rico e sovina, uma namorada catita, sobrinhos ‘adultos’ e um primo sortudo, Donald é o ‘homem comum’ (não fossem os Estados Unidos a pátria por excelência do senso comum), sujeito às trovoadas da vida e aos caprichos da sorte. Esta palavra, aliás, não é de modo algum aleatória, mas foi cuidadosamente escolhida. Quase toda história do Donald traz o mesmo tema recorrente, ora mais visível, ora subentendido: a dicotomia entre o Destino e a Escolha, entre a Sorte e o Azar.

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GASTÃO, SORTE E ‘HASARD’

O pato patina entre um e outro, como um joguete nas mãos de entidades superiores e invisíveis. Seu primo Gastão (também criado por Barks) é sortudo e tudo lhe vem sem esforço. Isso é um fato. Gastão é aquele que não merece nem faz por merecer o que lhe sobrevém. Não possui nenhum talento especial além de uma inexplicável e absoluta sorte. Esta sorte é uma espécie de ‘eleição divina’, algo não solicitado, não construído, sem nenhuma explicação a não ser um fortuito lance de dados. Pequeno parêntese: a sorte de Gastão e o conseqüente ‘azar’ de Donald nos levariam à Grécia, à existência grega e aos fundamentos da tragédia, se tivéssemos um pouco mais de tempo.

Donald, por outro lado, é esforçado, esperto (não se pode dizer que ele seja exatamente, humm, inteligente) e espirituoso, mas... azarado. Isto é também um fato imutável. O ‘azar’ de Donald está diretamente ligado, por oposição, à incrível sorte de seu primo Gastão; ao fabuloso toque de Midas de seu tio Patinhas; e até mesmo à inteligência e senso coletivo de seus três sobrinhos. Donald é um loser, para usar a corrente expressão norteamericana. Ele nunca vence, mesmo quando (supostamente) vence. Mas Donald nunca perde, mesmo que perca sempre, porque, de um modo ou de outro, é apenas a personagem passiva de algum drama cósmico e insuspeito. Donald se move no mundo como um pato em terra, patinando entre Fate & Choice, entre o arrasador sentimento da predestinação absoluta e lampejos de vontade-própria, revolta momentânea contra o que está escrito nas estrelas. É isso o que nos diz Barks: “O homem no mundo não está em seu ambiente”. Não há o que fazer, a não ser continuar procurando o lago. Afinal, quem é que nunca se sentiu como um pato fora d’água, principalmente nesse mundo ‘globalizado’ e ‘neoliberalizado’&qt;&

Uma das ‘brincadeiras’ de Barks (e que reforça nossa conclusão acima) é construir histórias com Donald exercendo várias ocupações cotidianas: ele é padeiro, afinador de piano, relojoeiro, especialista em demolição, bombeiro, fazedor de chuva e muitos outros tipos de ‘especialistas’. Essas histórias mostram o caráter universal do pato, o quanto a expressão ‘homem comum’ nele se encaixa total e completamente. Via de regra, tais histórias começam com Donald investido de uma função onde é um ‘grande especialista’. Ele é o melhor e o mais capaz nessa função, e todos o respeitam. O final das histórias quase sempre mostra o pato correndo, fugindo da cidade, ou escondido de uma enfurecida multidão raivosa. Entre o início e o fim das histórias está o já falado azar que o persegue. Um segundo parêntese se faz necessário aqui: esta palavra ‘azar’ é melhor identificada com o ‘hasard’ francês, talvez derivado do árabe al sar, ‘o dado’. Voltamos ao ‘lance de dados’, com mais propriedade. Do árabe ‘al sar’, vem o sentido da palavra nas línguas européias: hasard, azzardo, azar, implicando a idéia de um lance de má sorte. A melhor palavra, em português, seria a tradução literal do francês: acaso. E é nesse contexto de acaso-azar que se move o pato Donald.

OS MENINOS E O LIVRO

A partir do Donald, surgem os sobrinhos trigêmeos Huguinho, Zezinho e Luizinho. Com o passar do tempo (e das histórias), os meninos deixam de ser os moleques arteiros e cabuladores de aula do início para se transformarem gradativamente no ‘discurso adulto’ (ironia barkiana: a verdade está na boca dos pequeninos) das aventuras dos patos. São eles que provêm as soluções nos momentos difíceis, que invariavelmente salvam seu tio dos mais variados perigos, que transpõem os obstáculos e, o mais importante, são eles que carregam o Manual do Escoteiro Mirim, símbolo da Escritura, do Saber ocidental gravado em livros, a História. O Manual nunca erra, reconhecem todos. Barks reforça, assim, o fato de que a nossa civilização é uma civilização do Livro. As leis estão nas Constituições e nos Códigos Civis, os comportamentos estão na Literatura, a religião está na Bíblia Sagrada. Uma legislação do livro, uma cultura do livro, uma religião do livro. E quem ‘carrega o livro’, para Barks, não é Donald (o homem comum), nem Gastão (o sortudo eleito) e nem mesmo Tio Patinhas (o devoto), mas os pequenos perfeitos.

Se Donald é o homem comum (um indivíduo), seus três sobrinhos são a totalidade do homem (da geração, do coletivo). Três é o símbolo da perfeição e da completitude, bem sabemos. Os trigêmeos falam a mesma frase, simultaneamente, e movem-se como se fossem um só corpo. Idéia de identidade, de generalização, de uniformidade. Por outro lado, também podem completar entre si uma mesma frase, separam-se para executar tarefas complementares e simplesmente jamais ‘existem’ nas histórias de forma individual. Idéia também de unidade, de ‘completação’, de acordo mútuo e cooperação. A principal função do trio, na maioria das histórias, é equilibrar os opostos: ora mediando Donald x Gastão, ora Donald x Tio Patinhas.

TIO PATINHAS, O ÚNICO APAIXONADO

Em 1947, Barks cria o Tio Patinhas, baseado em dois velhotes sovinas da literatura: Ebenezer Scrooge, da Canção de Natal de Charles Dickens, e Uncle Bin, de Andy Gump. Ariel Dorfman, o irado autor chileno do polêmico Para ler o Pato Donald, sucesso absoluto nas fileiras da esquerda antiimperialista dos anos 70, diz que o Tio Patinhas é “o único ser autenticamente apaixonado do universo dos Patos”, e esta é uma interpretação correta. Identificado superficialmente como um ícone do Capitalismo, imagem do self made man, a verdadeira face do velho pão-duro sempre passa despercebida. Mas está lá, subliminar e arquetípica. Uma breve análise de sua iconografia nos revela algo. Suíças, óculos pince-nez, cenho sempre franzido: ele é um ancião e, portanto, sábio. Sua cartola e polainas falam-nos de sua posição de autoridade, enquanto seu capote vermelho e surrado nos remete a uma autoridade ‘eremita’, simplória. Além disso, ele carrega uma bengala como se fosse ao mesmo tempo o cetro de um rei e o cajado de um profeta (um cetro-cajado de um rei-profeta).

Há ainda mais alguns símbolos que o rodeiam: a Caixa-Forte (o castelo, o Mundo); a Moedinha Número Um (a Essência, o símbolo palpável de seu Mana); e o Ouro, sempre perseguido, sempre acumulado, sempre guardado como o tesouro supremo. Não sejamos ingênuos a ponto de confundir o Ouro do Tio Patinhas com o mero ‘dinheiro’. Este Ouro é conquistado a partir de uma busca espiritual, de uma paixão ardente, de um sacrifício atroz, de profunda abnegação. Tio Patinhas é riquíssimo, porém não gasta um tostão sequer. Seu Ouro não lhe serve para comprar coisa alguma (a não ser mais desse Ouro), não tem nenhuma outra espécie de valor a não ser sua qualidade intrínseca de Ouro, sua, poderíamos arriscar, ‘ouridade’. Para que, então, este velhote sovina acumula tanto&qt;& Para sua devoção pessoal. “Para mergulhar nele, para nadar nele como um peixe, para escavá-lo como uma toupeira”. O Ouro é seu êxtase, sua iluminação beatífica, e também a causa de sua ‘pobreza’.

BARKS E NÓS


Todos temos uma ou outra história preferida de Carl Barks, mesmo que seja a primeira vez que estejamos ouvindo o nome do autor. A minha é a história do Bombastium, onde Tio Patinhas compra, num leilão, uma bola gelada que ninguém sabe para que serve. Arremata-a por “um trilhão de cruzeiros e seis pias de cozinha”. Um representante de um país do Leste (Brutopia, alguém sabe onde fica&qt;&) também a quer e o persegue. Eles vão parar no Polo Norte, onde um pinguim-fêmea a confunde com um ovo. Bem, esta é minha história. Sempre me encantou o fato de que alguém pagasse tanto por algo ainda não objetivamente conhecido, por uma mera possibilidade. Depois de adulto, percebi como esse procedimento não é assim tão incomum.

Já a história favorita de meu amigo Sven, professor de Literatura na Suécia, é ‘Perdidos nos Andes’, também citada em entrevista de Carl Barks como uma de suas melhores histórias. ‘Perdidos nos Andes’ recebeu uma recente (e lamentável) reedição, na Revista Pato Donald 2158. Nela, Donald e seus sobrinhos vão aos Andes para procurar uma cidade perdida que produz ovos quadrados! Os simbolismos e as várias e inusitadas ‘leituras’ de qualquer destas histórias fariam a vida de um bom junguiano.

Por sua obra, Barks merece estar num panteão elevado, junto a colegas já consagrados: Will Eisner, Hugo Pratt, Moebius, Hergé, Alex Raymond e outros. Ele é, como diria Ezra Pound, um autêntico ‘antena da raça’. Carl Barks é chamado carinhosamente, nos Estados Unidos, de Duckman. Mas patos somos todos nós, vivendo numa Patópolis erigida por pioneiros que não conhecemos, buscando desesperada e apaixonadamente nosso Ouro, tentando ‘ler’ nosso Manual do Escoteiro em busca de soluções ‘práticas’, patinando entre a Sorte e o Azar, esperando o dia em que nos tornemos senhores de nosso Destino. Patos fora d’água, vestidos de marinheiro para nos lembrarmos sempre que não pertencemos ‘a tudo isso que está aqui’.

Por favor, onde fica o laguinho&qt;&

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