No Festival de Cannes 2024, tive a oportunidade de conversar com vários integrantes da “delegação” brasileira presente em solo francês francês – e a ideia que emergiu de cada um desses papos foi uma só: estamos no caminho da recuperação. Após a pandemia do covid-19, que transformou o consumo cinematográfico ao redor do mundo, e os efeitos do governo Jair Bolsonaro (2019-2022) no aparato público da cultura nacional, o cinema brasileiro faz um retorno significativo ao cenário internacional. São filmes diversos e elogiados. Mas faltava, ainda, sermos vistos como protagonistas na arena mundial.
Que diferença alguns meses fazem, não é mesmo? A consagração de Ainda Estou Aqui no Oscar 2025, levando para casa a estatueta de Melhor Filme Internacional, surge como a coroação de um período em que essa caminhada na direção de uma glória perdida virou corrida, depois voo. Finalmente chegamos a um momento em que é possível olhar para o futuro, e não para o passado – efeito que só uma conquista inédita, como esse prêmio da Academia, poderia causar.
É verdade, é claro, que Ainda Estou Aqui não precisava vencer o Oscar para gravar o seu nome na história do cinema nacional. Os mais de 5 milhões de espectadores que ele atraiu para as salas, superando com folga os R$ 100 milhões de faturamento, já seriam o bastante para soletrar um fenômeno histórico – especialmente porque vieram coroando um ano cravejado de sucessos comerciais produzidos no Brasil, como O Auto da Compadecida 2 (4.2 milhões de espectadores), Os Farofeiros 2 (1.8 milhão) e Nosso Lar 2: Os Mensageiros (1.6 milhão), que sinalizam talvez a conquista mais importante para continuidade do cinema no Brasil: um retorno às salas em níveis pré-pandêmicos.
Separando Ainda Estou Aqui de seus colegas campeões de bilheteria, no entanto, está o peso da história real que ele conta, e seu simbolismo para o Brasil. O sucesso meteórico do filme de Walter Salles significa também uma educação histórica, uma pedra de toque para o brasileiro reconhecer e afirmar o legado violento do período da ditadura militar, e o fato de que sobrevivemos a ela e estabelecemos uma democracia que precisamos proteger. Que Ainda Estou Aqui tenha virado aquilo que o produtor Rodrigo Teixeira definiu, em entrevista ao Omelete, como “um evento obrigatório, [que dá] um atestado de ‘já vi esse filme’”, significa que os horrores que ele retrata nunca estiveram tão profundamente entrelaçados com a identidade do brasileiro. A partir de agora, vai ser (ainda mais) difícil esquecer.
A importância do Oscar diante de todos esses marcos culturais estabelecidos antes dele, então, é qual? Bom, antes de qualquer coisa, vale apontar que foi também a simbiose entre Ainda Estou Aqui e a premiação da Academia que permitiu que o longa estrelado por Fernanda Torres ganhasse a estatura que ganhou como fenômeno popular. O “efeito Oscar” na bilheteria de longas que normalmente não atrairiam tanto público é até ideia batida nos círculos gringos, mas é possível que o Brasil esteja vivendo este ciclo virtuoso pela primeira vez. O Oscar leva o público ao cinema, e a qualidade do filme dá brilho ao orgulho que já estava lá, ampliando seu rastro popular para além do esperado.
Acima de tudo, no entanto, a chancela do Oscar vem para encerrar esse ciclo de “recuperação” no cinema brasileiro. É como se tivéssemos passado por um período de provação, um teste de quão longe conseguiríamos ir com os impulsos que recuperamos e conquistamos nos últimos anos. Será que fazer cinema é como andar de bicicleta – uma vez “aprendido”, nunca se esquece como fazer, não importa quanto tempo se passe sem dar uma voltinha? Não que o Brasil tenha parado de produzir grandes filmes, é claro, mas o volume e a diversidade que vimos em 2024 não era a realidade dos últimos anos. Era preciso voltar a confiar na nossa potência como indústria, na nossa capacidade de energizar os talentos que sabemos ter e impulsioná-los em um nível internacional.
Com a vitória de Ainda Estou Aqui, essa confiança está recuperada, encarnada no objeto concreto de uma estatueta dourada, que é incontestavelmente nossa. O ineditismo da conquista, no entanto, também prova que esse período do cinema brasileiro não pode e nem deve se limitar somente a recuperar. É possível e é preciso superar, ir além, conquistar aquilo que sabemos merecer desde muito tempo. O Oscar de Ainda Estou Aqui encarna essa possibilidade, dando ao cinema brasileiro a permissão de respirar fundo após uma escalada difícil, apreciar a vista, e começar a pensar na próxima montanha.