Lá em 2018, falando da adaptação para a TV de A Amiga Genial, uma crítica do The New Yorker definiu o encanto da série da HBO, inspirada na quadrilogia de Elena Ferrante, nos termos de sua linearidade. Em um mundo em que autores de todas as estirpes e gêneros tão frequentemente fragmentam as linhas do tempo de suas narrativas para provocar ou prender a atenção do público, mais afeito a prestar atenção em um quebra-cabeças do que na boa e velha dramaturgia, o ato de ouvir uma boa história contada do começo ao fim, e fazer as conexões e rimas dentro da própria cabeça, ao invés de tê-las esfregadas na nossa cara pelo narrador, é um prazer raro. Se a Vida te Der Tangerinas, novo k-drama da Netflix, ganha muitos pontos por resgatar esse mesmo prazer.
A série, uma das mais aguardadas deste início de ano pelos fãs de conteúdo sul-coreano, até começa com um flash forward para a velhice de Ae-sim, sua protagonista - mas a cena inicial é só isso mesmo: um prefácio, uma maneira de emoldurar a trama na qual a roteirista Lim Sang-choon (Para Sempre Camélia) está de fato interessada. Daí que começamos a assistir a uma Ae-sim de sete anos (vivida nessa fase por Kim Tae-yeon), que acaba de perder o pai e precisa lidar com uma família fraturada e com uma mãe trabalhadora, mas irascível, na ilha de Jeju. E o roteiro se mostra notavelmente estável a partir daí, traçando principalmente a amizade entre Ae-sim e o filho de pescadores Gwan-sik, que ganham as formas adultas de IU e Park Bo-gum antes mesmo do fim do primeiro episódio.
O magnetismo dos dois atores, é claro, é o que tem atraído o público para Se a Vida te Der Tangerinas antes mesmo de sua estreia - ainda bem, portanto, que a série não demora para nos mostrar ao que os dois vieram. Conhecida como a “irmã mais nova da nação” na Coreia do Sul, e dona de uma das carreiras musicais mais bem-sucedidas da história do país, IU esbanja carisma de superestrela: ela sabe que os olhos estão todos nela, e parece bastante confortável com isso, encarnando integralmente o arquétipo da protagonista feminina impetuosa, mas também mostrando que sabe articular bem os traumas que se enfileiram diante de Ae-sim.
Park, por sua vez, não fica muito atrás da colega de cena quando se trata de notoriedade. A sua ascensão meteórica no início da década passada culminou no k-drama Reply 1988 (2015), que bateu recordes de audiência na Coreia do Sul e lhe rendeu o título de… olha só, “irmão mais novo da nação”. Desde então, ele tem se mostrado criterioso com a escolha de projetos, e propenso a abraçar personagens um tanto, digamos, excêntricos - como o Gwan-sik de Se a Vida te Der Trangerinas, que ele marca com uma linguagem corporal rígida, mas também uma determinação de ferro. É um modelo de masculinidade solícita e dedicada que está sempre um pouco fora do centro, mas nunca o bastante para alienar.
Juntos, os dois atores formam um casal pelo qual é fácil torcer, mesmo que (ou talvez justamente por que) não se encaixem num padrão muito fácil de protagonistas românticos. Se a Vida te Der Tangerinas, afinal, é uma história de amor meio relutante - Ae-sim e Gwan-sik são menos um casal predestinado, e mais uma dupla de rebeldes que se juntam por ter sonhos parecidos, o impulso para buscá-los, e a necessidade de quebrar radicalmente com os seus arredores para isso. A parte mais tocante do roteiro de Lim é ver como a tragédia e o desamparo vai unindo os dois, e como a dedicação que eles demonstram um ao outro é mais estratégia de sobrevivência do que qualquer outra coisa.
É nessa simpatia que a produção da Netflix vai se agraciando com o público, mesmo que lhe falte algo para… bom, para ser A Amiga Genial. Na linearidade de Ferrante e dos seus adaptadores existe um nível de insight que Se a Vida te Der Tangerinas ainda não alcançou. Parte disso está na direção de Kim Won-seok (Signal), que se aproveita pouco dos cenários paradisíacos de Jeju, e menos ainda das flutuações de gênero que definem muito o roteiro de Lim. Ademais, tanto na comédia física meio histérica que vem à superfície nos momentos de desencontro do casal quanto no drama que forma a base da história, Kim se limita a observar e iluminar - sem muito rastro de estilo - os ambientes rurais e urbanos de época em que se passa a produção.
A série sul-coreana, enfim, tem o potencial e acerta o formato para destrinchar uma vida, e os caminhos curiosos que ela toma, com poesia e propulsão similar tanto a de A Amiga Genial quanto de outro drama de época do momento, com o qual Se a Vida te Der Tangerinas divide ainda a ambientação asiática: Pachinko. Mas vale notar que a série do Apple TV+, embora não seja linear, tem visão incomparável para os ritmos e paralelos históricos no qual sua(s) trama(s) se localiza(m). Aqui, ainda falta um diferencial assim - mas, ao menos, sobra carisma.