Texto por: Daniel Dystyler, do Wikimetal
A questão não é nova: Música é uma das formas válidas para se posicionar politicamente? Ela deve instigar o debate de temas importantes? O poderoso alcance que a música tem pode ser usado como um ato político? Ou quando escutamos música queremos apenas nos divertir e esquecer dos problemas do dia-a-dia? Entretenimento deve ser algo leve apenas para nos distrair do cotidiano que já é pesado por si só? Se eu quiser discutir política vou buscar em outros lugares, deixe o meu heavy metal fora disso?
Apesar de não ser uma questão nova, esse debate ganhou muita voz e foi amplificado nos últimos anos. Seja pela crescente polarização que açoitou o mundo (e o Brasil em particular), seja pela relativa recente enxurrada de artistas que fizeram questão de se posicionar politicamente ao visitar o Brasil.
Desde o “Fora Temer” colado na guitarra de Tom Morello em sua passagem com o Prophets of Rage até o “#EleNão” estampado no telão do show de Roger Waters, essas ações causaram enormes reações com muita gente pedindo pra não misturar política com música, alguns se decepcionando com seus ídolos.
Então, afinal, será que política e música (e o heavy metal em particular) não devem se misturar, como diz o mantra que virou meme da Barbie? E quando se misturam, o que acontece? É bom ou ruim? Essa mistura tem acontecido? Desde quando?
Como diria Hercule Poirot, o famoso detetive belga de Agatha Christie, “para responder a perguntas complexas, precisamos de ordem e método.” Por onde devemos começar? Ordem e Método: vamos começar pelo começo.
Em 18 de setembro de 1970, apenas 7 meses após ter fincado a pedra fundamental na criação do heavy metal, o Black Sabbath lançou seu 2o. disco, Paranoid, um dos mais emblemáticos da história. Além da lendária faixa-título, o quarteto nos presenteou com clássicos como “Iron Man”, “Planet Caravan”, “Electric Funeral”, “Hand of Doom”, “Fairies Wear Boots” entre outras. Mas é na abertura do álbum, com “War Pigs”, que os quatro jovens que vieram do proletariado de Birmingham ridicularizam a esnobe classe dominante e dão um soco, direto, na cara da Guerra do Vietnã que na época estava no auge do conflito.
Embora Ozzy Osbourne já tenha declarado que acha que “War Pigs” é contra qualquer guerra, Geezer Butler, principal letrista da banda, disse em entrevista à Rádio BBC de Londres em 1970, que essa música “é contra a Guerra do Vietnã, e sobre como políticos e pessoas ricas declaram guerras para seu benefício próprio e mandam os pobres morrerem por eles”. A abertura da faixa dá o tom do posicionamento da banda:Generais reunidos como bruxas em missas malignas
Mentes do mal que planejam destruição
Feiticeiros da construção da morte
No meio, Ozzy canta:
Políticos se escondem com medo. Eles só declaram guerra.
Por que lutariam? Esse papel é para os pobres
Por fim, Tony Iommi, Bill Ward, Geezer e Ozzy decretam qual deveria ser o fim de quem criou essa guerra:
Dia do julgamento, Deus está chamando
Ajoelhados, os porcos de guerra rastejam pedindo misericórdia por seus pecados
Satã ri e abre suas asas.
Na época, a incursão militar americana no Vietnã era alvo de intensas discussões e críticas. E embora não existisse o poder de amplificação que a Internet e as redes sociais proporcionam atualmente, a polarização na sociedade em relação a esse tema era similar com as que temos visto atualmente. Pessoas de um lado defendendo o envolvimento americano no conflito, em nome da defesa da liberdade contra uma suposta ameaça comunista. E pessoas do outro lado, implorando para trazer os soldados de volta. “Bring The Boys Back Home” cantaria o Pink Floyd em seu seminal álbum duplo The Wall, lançado alguns anos depois.
Nesse contexto de polarização, o Black Sabbath não poderia ter oferecido um início mais politizado do que esse para a criação do heavy metal, em pleno ano de sua fundação, 1970. 50 anos depois, “War Pigs” ficou entre as três músicas mais tocadas pelo Sabbath (junto com “Paranoid” e “Iron Man”), executada mais de 1000 vezes ao vivo até o último show em 2017 na cidade natal de Birmingham (veja o vídeo aqui).
Depois de “War Pigs”, centenas de bandas mantiveram o ativismo político presente em suas composições e posturas. Exemplos não faltam, desde as que são notoriamente conhecidas pelo seu engajamento político como o Napalm Death, Rage Against The Machine e Gojira, até bandas que, com menos reconhecimento, levantam as mais diversas bandeiras e causas. Vamos passear por alguns desses exemplos:
Após ter crescido sob a ameaça da Guerra Fria e constantes ameaças de agressão entre o líder soviético, Leonid Brezhnev, no poder por quase 20 anos e o presidente conservador Ronald Reagan, não é de estranhar que Dave Mustaine, tenha batizado o segundo álbum do Megadeth com os dizeres “Vende-se Paz… Mas quem está comprando?” trazendo na capa uma ONU bombardeada e o sorridente mascote da banda Vic Rattlehead com uma placa de “VENDE-SE”.
Em Peace Sells… But Who’s Buying, Mustaine escancara o interesse econômico do complexo militar americano, em pleno ano de 1986 quando um “jovem” Mikhail Gorbachev apenas iniciava o processo de abertura da União Soviética. É um tema super político, ainda mais considerando o contexto da época.
Peace Sells… But Who’s Buying?, álbum de 1986 do Megadeth
Em 1985, o heavy metal teve que ser defendido em um julgamento político quando o vocalista do Twisted Sister, Dee Snider, representando também outras bandas de metal (incluindo AC/DC, Black Sabbath, Def Leppard, Judas Priest, Mötley Crüe, Mercyful Fate e W.A.S.P.) foi convocado para depor no senado dos EUA no processo do PMRC (Parents Music Resource Center) liderado por Tipper Gore.
Embora não seja um exemplo de bandas compondo sobre causas políticas, o depoimento de Dee Snider, na época com apenas trinta anos, frente a um comitê formado por senadores conservadores, foi uma das ações mais políticas da história do heavy metal e deve ser agradecida pelos headbangers para sempre. Quando eu o entrevistei em 2013, tive a chance de agradecer em nome dos bangers brasileiros dizendo que esse depoimento foi uma das coisas mais fenomenais que alguém já fez pela comunidade do metal, ao que ele me respondeu:
“Obrigado por dizer isso, significa muito para mim. E realmente, é meio incrível que nos EUA agora isso é parte da História, eles ensinam isso nas salas de aula do colegial quando falam sobre censura, eles ensinam sobre a posição que passei no meu discurso no senado.”
Que maravilhosa intersecção de heavy metal com política, hein? O metal mudou o que é ensinado nas escolas sobre censura! Tudo isso a partir do engajamento e postura política de uma banda, de um artista.
Os exemplos são infindáveis: O Slayer até ganhou um Grammy em 2007 pela música “Eyes of the Insane” que trata sobre os elevados índices de suicídio entre veteranos do exército causados pelo stress pós guerra. E esse intenso ativismo político não se restringe aos EUA e Inglaterra, mas está presente em todas as regiões do planeta e sob as mais diversas bandeiras políticas.
Dee Snider no Comitê do Senado americano
Em 2013, a banda israelense Orphaned Land convidou a banda palestina Khalas para uma tour por 6 países. Israelenses e palestinos fizeram 18 shows juntos transmitindo uma clara mensagem política. Uma mensagem de convivência pacífica que aparentemente só o metal é capaz de transmitir. “Não há mensagem maior para paz do que essa turnê”, disse na época o líder do Khalas, Abed Hathut, enquanto Kobi Farhi, o vocalista da banda israelense projetou: “Algum dia, nossos filhos terão uma banda juntos.”
The Peace Series, álbum de 2021 com Orphaned Land de Israel e Khalas da Palestina
No final dos anos 80, os americanos do Evildead e do Sacred Reich usaram sua música para protestar contra a destruição do meio-ambiente. Já o Retribution Denied da África do Sul se manteve firme em expôr a corrupção da política do Apartheid no começo dos anos 90. Em oposição ao governo de Vladimir Putin, o Pussy Riot entrou em conflito político diversas vezes, sempre defendendo direitos LGBTQIA +, feminismo e criticando o autoritarismo do governo.
Maria Alyokhina do Pussy Riot, teve que fugir da Rússia disfarçada de entregador de comida para escapar da polícia e da crescente perseguição do presidente Putin.
Brujeria do México, Gladiator da Eslováquia e o próprio Sepultura do Brasil criaram narrativas defendendo suas respectivas raízes e identidades, questionando imposições culturais que advém do interesse econômico e exploratório de outras nações. E isso não ficou apenas no passado: O legado de posicionamento político iniciado com o Black Sabbath e perpetuado por mais de meio século, segue vivo.
Maria Alyokhina do Pussy Riot
Em 2022, ano de eleições presidenciais no Brasil, dezenas de bandas seguem se posicionando. Apenas para citar alguns entre inúmeros exemplos locais, tivemos nesse ano o lançamento de “Tudo Destruído” do Matanza Inc., sobre o atual estado político do país. O Black Pantera, ancorado pelo single “Fogo nos Racistas", usou o recente show do Rock In Rio para se manifestar ao vivo pela TV: “Chamem os candidatos pretos para os debates!”; já o Scars From The Last Fight fez uma reflexão sobre as desigualdades sociais no recente single, “T I M E L E S S”; o Ratos de Porão lançou Necropolítica, álbum inspirado no Bolsonarismo como resultado da indignação política que o grupo tem sentido desde o ano passado; o manifesto da banda santista SURR coloca arte como “um movimento político e revolucionário”; enquanto o The Apartment Cats afirma que o eleitor brasileiro é jogado de um lado para o outro numa avalanche de fake news no single “Pêndulo.”; por fim, o VIPER em “Freedom of Speech” (“Liberdade de Expressão”) afirma:
Se você acha que a bala de uma arma é mais forte que um pensamento,
Você estará perdido para sempre.
Esses são apenas alguns exemplos de como a cena metal segue sendo politizada. Sempre foi.
Protesto em show de Roger Waters deixa fã indignada
Dizer em 2022 que política e metal não devem se misturar é renegar a origem e a História de como esse movimento foi fundado e construído. É ignorar todas as declarações e posições que foram tomadas ao longo de décadas por tantos artistas em tantos países diferentes.
É fácil curtir “Refuse/Resist”, “Killing in the Name” ou “B.Y.O.B.” desprezando seu contexto político. Seja por ignorância, preguiça ou desinteresse nas letras. Difícil é quando as críticas políticas de artistas de heavy metal conflitam com ideias defendidas por alguns fãs de metal que claramente não conseguem lidar com essas críticas, e preferem escapar usando o mantra da Barbie: “Ain, política e metal não se misturam.”
Misturam sim. Desde sempre.
PARA OUVIR
Com a polarização cada vez mais profunda no cenário político atual e acontecimentos de grande repercussão na sociedade ao redor do mundo, temas como abuso de poder, brutalidade policial, racismo, facismo, fake news e discurso de ódio se tornam cada vez mais presentes e debatidos nos noticiários e redes sociais – e também na música pesada.
Por isso, o Wikimetal selecionou as melhores músicas de rock e metal (e algumas surpresas) que falam sobre esses temas tão urgentes na sociedade. Acompanhe abaixo nossa seleção abaixo – também disponível no Deezer.
WIKIMETAL RECOMENDA
O VIPER lançou a faixa que dá nome ao aguardado sétimo álbum de estúdio da banda. Em “Timeless”, composição do guitarrista e cofundador Felipe Machado, a banda retorna às raízes do power metal com uma música rápida e melódica, com um vocal matador.
A formação atual do VIPER é composta por Leandro Caçoilo (vocais), Felipe Machado e Kiko Shred (guitarras), Pit Passarell (baixo e vocais) e Guilherme Martin (bateria). Porém no novo single “Timeless”, o VIPER contou com um convidado especial, Nando Machado no baixo.
O novo disco do VIPER foi produzido por Maurício Cersosimo, que já trabalhou com artistas como Paul McCartney e Avril Lavigne.
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