Rock´n´roll is here to stay
Vocês não sabem do lixo ocidental
Vocês não sabem do lixo ocidental
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Há no Brasil uma linda unidade da federação, talvez a mais linda entre todas: Minas Gerais. Como uma vez disse o político Itamar Franco, sem nenhuma simpatia pelo resto do político: é a terra do povo montanhês.
O que tem a ver com o rockn roll o povo montanhês?
Em uma resposta rápida: nada.
Em uma resposta ampla e refletida: algo. Desde que ampliemos o rockn roll.
O título deste artigo é um verso de uma canção deste povo montanhês. A canção chama-se "Para Lennon e McCartney". Decerto, não é necessária erudição em rockn roll para conhecer estes nomes. A dedicatória e o verso, no entanto, mostram, de maneira soberba, que, para baixo do Equador, o buraco fica em outro lugar. Indica que, pelo menos nos 60 e 70, fazer música como se fôssemos ingleses ou norte-americanos radicados em outro país e cantando em outra língua não dava pé. Seja lá o que ouvimos, vemos e deglutimos passa pelo triturador lixo ocidental. O que sai na outra ponta não pode ser tal e qual ingerimos. E também não pode ser merda.
Não reconhecer a singularidade deste dado psíquico e cultural é submergir no horror da potente globalização. É fazê-la destrutiva.
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O panorama da música brasileira, invariavelmente milionário, passava um período inigualável entre os últimos anos 60 e os primeiros 70. A Tropicália havia enriquecido a tripartição da MPB entre a bossa-nova e sua sensibilidade pequeno-burguesa, a música de protesto e sua revolução e a ingenuidade ideológica e musical da Jovem Guarda. Os tropicalistas podiam ser, ao mesmo tempo, pequeno-burgueses, revolucionários, ingênuos e sonhadores. Um dos elementos decisivos para esta influência, apesar da imersão no lixo ocidental, foi apresentar uma nova temática e uma nova estética, não menos revolucionária, mas mais voltadas a estilo e costumes do que se restringir à glória da cultura popular que resiste ao rolo-compressor da uniformização do capitalismo.
Reside aqui a tragédia e a virtude de chafurdar no lixo ocidental. Pois, a condição periférica a uma cultura dominante, que martela ouvidos, olhos, coração e pensamentos, permite receber estas informações todas e - tragédia! - limitar-se a elas; e - virtude! - reciclá-las de costas para elas e envolto na tradição das histórias dos avós, das lendas e dos sons do lugar onde nasceu e cresceu e compôs.
A Tropicália aproveitou este momento, assumindo a proposição antropofágica oswaldiana e do que rolava como novo no rockn roll: a ampliação do horizonte para o erudito, o jazzístico, o simplesmente inclassificável. Nesse lugar, entram desde os Beatles pós- Revolver até a psicodelia californiana e as bandas fusion, com os pés no rock, de Soft Machine a The Flock.
A Tropicália quis se estabelecer como um movimento. No entanto, ali, entre a Bahia e São Paulo e por trás do Rio de Janeiro, em silêncio, como cabe na mitologia do povo montanhês, uma outra mágica musical fervia: era o povo do Clube da Esquina. Nada semelhante a um movimento, não obstante o poder criativo de seus músicos e poetas.
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Curioso nesta história é o papel de Milton Nascimento.
Pouco sei do sujeito Milton, embora lá pela segunda metade dos anos 60 já era um músico reconhecido, com discos publicados (um deles gravado nos Estados Unidos: Courage) e participação destacada nos festivais de música, uma coqueluche que não mais se repetiu. Entre suas canções, algumas das mais belas da MPB, "Travessia", "Beco do Mota", "Sentinela", três parcerias com Fernando Brant. O sucesso não impediu que, ao lado da regravação de "Pai grande" e da pessoal interpretação de "Felicidade" (Jobim e Vinícius), incluísse no quarto disco, Milton (de 1970), as faixas "Para Lennon e McCartney", "Clube da esquina" e "Alunar", do jovem compositor Lô Borges, que - basta escutá-las - trazem uma levada rock e deslizam para fora das harmonias características da MPB. Certamente, a generosidade de Milton Nascimento promoveu esta reunião (nas histórias sobre o grupo, Milton foi morar no mesmo prédio onde moravam os Borges. E não eram poucos: doze Borges!) e a oportunidade a outros.
Tanto que a banda convidada para gravar o disco consistia em um grupo de rock: Som Imaginário. Este banda gravaria no mesmo ano o disco Som Imaginário I, em que o destaque era de Zé Rodrix, e no ano seguinte, Som Imaginário II, destacando Frederyko. Dois discos antenados integralmente ao rock da época: criativos, engraçados, inovadores sem deixar a dever aos laureados Mutantes. "Cenouras", "Super-God", "Salvação pela macrobiótica", "Nepal", se não brilhavam pela poética, deixavam clara a opção de não seguir rumos conservadores, orientados pelo ideário hippie-naturalista-comunitário.
Em "Nepal", música e letra do guitarrista Frederyko, a banda canta: no Nepal tudo é barato / no Nepal tudo é muito barato / no Nepal existe uma praça onde fica um monte de dinheiro/ quem precisa tira o que precisa / e quem ganha bota lá de novo. Mostra o desapego ao fetiche maior do capitalismo e à noção de acumulação e propriedade privada. O Som Imaginário ainda gravou um terceiro disco, Matança do porco, em que se destaca o pianista Wagner Tiso. Neste disco, espetacular por sinal, o rock é influência marginal e a tendência é notavelmente jazzística, além de ser um disco instrumental.
Enfim, Milton Nascimento, cantor e compositor reconhecido, abriu caminho para um bando de músicos que não se aprisionaram a uma estética estreita de MPB e a consideravam porosa para incluir o que rolava em outras estéticas musicais. Não obstante, sem esquecer que eles não sabem e nós sabemos do lixo ocidental.
Se o Som Imaginário não se envergonhava de assumir o ideário hippie, é a banda que acompanha Milton Nascimento cantando "Canto latino", de Milton e do cineasta Ruy Guerra. Esta canção movida por um ideário muito distinto do tribalismo naturalista da contra-cultura, referido acima. Ao contrário, introduz-se na mais pura tradição revolucionária guevarista.
É possível, inclusive, encontrar na letra de Ruy um artifício para enganar os censores da ditadura militar (jovens: não se esqueçam disso e preparem os espíritos para resistir a qualquer intenção autoritária. Venha de onde vier!). Afinal de contas, tudo era objeto de censura e os censores, por mais atentos que fossem aos atentados de ideologias exóticas à tradição brasileira, certamente deixariam escapar letras mais explícitas em seu motivo revolucionário. Foi o que ocorreu com "Canto latino". Transcrevo os últimos versos: a primavera que espero / por ti irmão e hermano / só brota em ponta de cano / em brilho de punhal puro / brota em guerra e maravilha / na hora, dia e futuro / da espera virar´. Toda a lógica semântica do poema indica que o verso brota em guerra e maravilha deve ter sido originalmente brota em guerra de guerrilha. Resta saber se os autores anteciparam o corte pela censura e maquiaram o verso, ou, menos provável, os dedicados censores falharam ou foram influenciados pela beleza da melodia [manifestem-se os envolvidos].
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Não termina aqui a história do Clube da Esquina. Faltam nexos necessários. De Zé Rodrix com o rock rural, de Beto Guedes com Flávio Venturini e O Terço e o 14 Bis. E Milton dando uma canja para o grande nome do rock progressivo tupiniquim: Sagrado Coração da Terra.
Aguardem!

