Planeta Terra 2007
Os velhotes do Devo fizeram o melhor show no melhor festival do ano
A primeira edição do festival Planeta Terra, que aconteceu em São Paulo, carregou todos os elementos para entrar como um dos eventos mais bem-sucedidos na história rock da cidade.
Em vez de apelar para a velha e ruim estrutura do Anhembi, a organização do festival peitou a carência local de lugares para shows de grande porte. Optou, então, por ocupar uma área nova em Santo Amaro que, apesar de complicada de se achar no mapa, teve seus galpões abandonados brilhantemente ocupados.
Kasabian
Devo
Pato Fu
Tokyo Police Club
Lily Allen
Lucy and The Popsonics
Cansei de Ser Sexy
Datarock
Supercordas
O respeito ao público - fato raro em festivais paulistas - foi o principal fator positivo da estrutura. Som decente (tanto no palco principal ao ar livre quanto no palco "indie", fechado em um dos galpões do lugar), shows começando em horários pontuais, banheiros bem cuidados, área suficiente para circulação sem aglomerações e bares bem organizados e com preços decentes. A água custava dois reais, vejam só. Uma exceção que deveria se tornar regra.
Pena que a curadoria esperta dos shows foi desperdiçada, obedecendo ao padrão banana de promover shows concorrentes nos dois palcos. Quem comprou o ingresso teve que decidir entre o clássico Devo ou a contemporânea The Rapture. Ou entre a estréia de Lily Allen no país e o retorno do Cansei de Ser Sexy. Totalmente nonsense.
Reconsiderando isso, e contando que o evento terá uma segunda edição (outro tipo raro por aqui - festivais longevos), o Planeta Terra tem tudo para ganhar brilho no ramo.
Só faltaria daí um novo repertório nos intervalos entre um show e outro. Porque ouvir o mesmo disco do Garbage, incessantemente tocado durante todas as quase dez horas de festival, é de lascar.
Pontapé brasileiro
A maratona começou ainda sob o sol de final de tarde, com os shows das pequenas Supercordas, do Rio de Janeiro, e Lucy and The Popsonics, de Brasília, tocando para um punhado de fãs que chegou cedo ao lugar.
Os cariocas provaram rapidamente que seu posto de novo clássico máximo do indie nacional não é gratuito. Com seu repertório rural-psicodélico, de forte influência dos anos 60, a banda arrematou faixas do álbum Seres verdes ao redor (de 2006) com participação de Tatá Aeroplano, membro do Jumbo Elektro.
Missão difícil para bandas pequenas, o Supercordas enfrentou com sucesso notável o som grandioso do palco ao ar livre e mostrou que tem culhão para shows fora de espaços menores.
Resultado bem além da banda da região central, que soou deslocada com seu electrorock encorpado e performance exagerada. A apresentação da dupla Popsonic, acompanhada de Lucy (auto-classificada como "uma bateria eletrônica sentimentalista"), é do tipo que funciona em frente a uma platéia bêbada, dentro de um inferninho.
Mas ali, em um galpão vazio, como atração de abertura de um festival com censura 18 anos, a química não apareceu. A vocalista Fernanda parecia ocupada demais em urrar feito Derrick Green e arrumar poses que mostrassem sua calcinha para os fotógrafos. E as letras pré-adolescentes, de músicas como "Eu quero ser seu Tamagochi", não ajudaram a impressionar.
Tokyo, Takai, Tarock
A segunda onda de bandas dividiu o público entre o primeiro grande nome do Planeta, Pato Fu, e a canadense estreante Tokyo Police Club.
A banda mineira, liderada pelo casal Fernanda Takai e John Ulhôa, ocupou o palco maior com a costumeira competência - apesar de começar a apresentação com "Mamã papá", faixa mais fraquinha do último álbum, o recém-lançado Daqui pro futuro.
Enqüanto mesclavam canções de todos os seus discos às mais recentes, o casal não conseguia esconder a euforia por dividir o lineup com o Devo, um dos grandes nomes do festival, influência-base declarada do som do Pato Fu. Tietes, até dedicaram a clássica "Gol de quem?", do começo de carreira, à banda estadunidense. Até então, ninguém imaginava que Takai invadiria mais tarde o palco para agarrar Mark Mothersbaugh.
Enqüanto isso, do outro lado do lugar, o quarteto Tokyo Police Club honrava o nome do palco indie, marcando espaço como a banda verdadeiramente desconhecida do festival.
Os canadenses vieram para o Brasil sem um disco cheio lançado, apenas com dois EPs na bagagem (A lesson in crime, de 2006, e Smith, lançado em fevereiro), que deram o tom do setlist. Mas a falta de carreira não gerou um show molambento, bem pelo contrário.
Carismáticos, os indies de Ontario são uma versão filhote dos Strokes, mais urgentes, menos blasés e sem a carga de hype que detona qualquer expectativa. Assim ficou fácil para ganhar a platéia já a partir do auto-hino "Cheer it on", que abriu o show, arrancar coro de palmas na intensa "Cut cut paste" e ganhar compreensão ao errar "Nursery, academy", uma das faixas que devem estar no álbum de estréia e entraram no show. Ponto pra eles, que levaram também o troféu de "tecladista mais animado do festival".
Ainda ali no palco indie, enqüanto o coletivo brasileiro Instituto homenageava Tim Maia no palco principal, a estrela ficou nas mãos do duo norueguês Datarock, donos de um dos álbuns de estréia mais elogiados dos últimos anos (Datarock Datarock, de 2005).
No palco, com apoio de mais dois músicos, todos uniformizados com seus característicos moletons vermelhos, a banda arrematou todo o seu potencial camp. As boas músicas do disco, tocado quase na íntegra, se mesclaram a novas, como "True stories" e "Molly" (inspirada na musa do cinema oitentista Molly Ringwald).
Mas o que move o show são as piadinhas infames, as poses bobas, as coreografias à la Jane Fonda nos seus vídeos de ginástica. É a micareta pós-punk, marca registrada do som do Datarock.
Micareta, sim, difícil disfarçar. Tente pegar o solo de guitarra de "Fa-fa-fa", grande hit da banda (reconhecido pela platéia já nos primeiros acordes), e colocar nas mãos de Alceu Valença. Perfeito para animar qualquer trio elétrico na Bahia, sem perder a pose.
Ao final, como que para provar a cafonice intrínseca, o quarteto dublou "(I've had) The time of my life", da trilha sonora do filme Dirty dancing. Afinal, se todo mundo ali já perdeu a vergonha (e a pose), é melhor aproveitar e chutar o balde em alto nível.
Lily vs Lovefoxxx
O embate seguinte parecia duro: a estréia de Lily Allen em meio a caipirinhas ou o retorno do Cansei de Ser Sexy ao país? Os brasileiros, fãs à parte, ganharam de W.O.
A inglesinha desbocada chegou ao palco principal causando, de cigarro na mão, xingando os técnicos de som durante "LDN", single do seu primeiro álbum, Alright, still. Mas se sua banda de apoio era excelente, a voz pouca de Lily não deu conta do brilho do seu microfone verde limão. Visivelmente bêbada, a moça não parecia com muita vontade de encerrar bem sua primeira turnê. Ao ponto de esquecer as letras das canções e perder o andamento das músicas, trocando o microfone por uma garrafa. Um vexame, só faltou vomitar. Assim não há rosto bonitinho que segure.
A sorte do público é que o cenário no outro palco foi bem diferente. Mesmo acostumados também a entrar bêbados no palco, o sexteto brasileiro mostrou no primeiro show da sua nova fase (depois de meses tocando no hemisfério norte) que o hype no exterior fez a banda crescer.
Quando o Cansei de Ser Sexy saiu daqui para ser adotado pela mídia externa, as meninas (mais Adriano Costa, produtor, baterista e mentor da esbórnia toda) eram alvo de críticas maciças da intelligentsia. O olho torto atingia a carência de noção musical das integrantes, a quantidade enorme de piadas internas durante os shows, a falta de canções sólidas ao vivo. Nada que seja necessariamente mentira, mas que não tirava o brilho do grupo, feito para divertir - os integrantes e a platéia.
Agora, com bexigas amarradas por todo o palco, o comeback do CSS (como foi rebatizado lá fora) foi um tapa de pelica nos críticos mal-humorados. A banda encarou o desafio, apoiada pela platéia de fãs - que cresceu exponencialmente, depois da tour internacional - e apagou o fiasco da sua primeira grande apresentação, no Tim Festival de 2004.
Primeiros hits da banda (como "Bezzi, "Acho um pouco bom"" e "Superafim"), as músicas em português sumiram do setlist, assim como as piadinhas internas. Mas o grupo se mostrou afiado, dominando o instrumental e pesando de verdade quando as músicas merecem. No cardápio, todas as boas composições do primeiro álbum - "Alcohol", preferida de Jarvis Cocker, "Art bitch", "Music is my hot sex" - mais a nova "Lindja".
Mas o brilho vai, claro, todo em cima da vocalista Lovefoxxx, nossa proto-Björk. A performance desordenada continua ali - com as coreografias próprias, os malabarismos com o fio de microfone e as roupas extravagantes - mas a guria transformou tudo o que fazia instintivamente em uma identidade de palco. Não é qualquer um que canta com voz distorcida com gás hélio (como ela fez em "I wanna be your JLo") e ainda sai por cima.
No final, com "Let's make love and listen Death From Above", a marca que ficou foi de uma banda brasileira merecidamente inserida no circuito mundial - e por mérito próprio. Como poucas.
This is Devo
Imagine um show onde a música mais recente foi gravada em 1983. Com uma banda em que os integrantes estão todos beirando os sessenta anos, vestindo fantasias amarelas e protagonizando coreografias nerds. Seria um cenário de dar vergonha, se a banda em questão não fosse o Devo, 35 anos quase ininterruptos de carreira, responsável pelo grande show do Planeta Terra.
A banda-conceito de Ohio entrou no palco no final do festival (concorrendo com a contemporânea Rapture), depois de um clipes que exibia vídeos antigos e explicava os preceitos da devolução.
Não é necessária muita explanação para se entender a importância vital do Devo na história da música, com seu post-punk que formou a base de boa parte das bandas que fizeram sucesso nos últimos 15 anos (incluindo a maioria dos grandes nomes que tocaram no Planeta, de Pato Fu a Cansei de Ser Sexy).
O frescor das músicas do grupo é o que segura a apresentação, que faz mais sentido para a platéia agora do que quando foram compostas. Liderado pelo vocalista Mark Mothersbaugh, o Devo entalhou uma coletânea de sucessos, lançados entre 1979 e 1983.
Imagine um show que começa com "That's good" e "Going under", emenda "Whip it" e "Peek-a-boo!", segue pelos covers atravessados de "Secret agent man" e "(I can't get no) Satisfaction" até o final, com "Gates of steel". É quase um "best of", karaokê, reproduzido ao vivo.
E mesmo quase sessentões, os devocratas mantêm a verve da sua época de mata virgem. Em "Mongoloid", Mothersbaugh banca a cheerleader com pompons de ráfia no canto do palco. Mais pra frente, em "Jocko homo", o uniforme amarelo é arrancado aos pedaços (e jogados para a platéia, assim como os chapéus "energy dome"), e os integrantes se exibem de camiseta e shortinho de ginástica. É compreensível que a insanidade passageira leve a fãzoca Fernanda Takai a invadir o palco e tentar arrematar um pedaço da roupa, sendo arrastada para fora pelos seguranças.
Seria ridículo, se não fosse glorioso. Já no bis, com uma hora e meia de show, depois do manifesto "Freedom of choice", entra o clássico personagem Booji Boy. Criança bizarra, vestido de profeta amalucado (à la Papa Bento XVI), rouba o microfone para cantar "Beautiful world".
"É um mundo lindo / Um momento maravilhoso para estar aqui / É ótimo estar vivo", jura ele. Com um show desses, difícil não concordar. Seria um mundo mais belo ainda se o festival tivesse acabado aqui.
Final melancólico
Depois da consagração devolucionária, o Kasabian entrou no palco principal com tudo para ser o anti-clímax do festival. E não conseguiu segurar a onda.
Única atração a pegar no microfone e com atraso, os ingleses arrasaram a paciência de qualquer um ali que não era fã incondicional, com sua arrogância fora de esquadro e sua grandiosidade forçada de banda de arena sem contexto. Já a partir de "Shoot the runner", hit que abriu o show, o vocalista Tom Meighan passou todo o tempo de peito aberto, esperando os louros de uma consagração que não merecia.
Pena. Um festival tão redondinho não podia acabar tão caído.