Machismo do Mötley Crüe e o lugar da mulher no rock

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Machismo do Mötley Crüe e o lugar da mulher no rock

Acusada de tentar “cancelar” o Mötley Crüe, me tornei a inimiga número um dos fãs por dizer o que penso

Omelete
10 min de leitura
05.05.2023, às 09H49.
Atualizada em 05.05.2023, ÀS 14H21

Por Larissa Catharine Oliveira

Se você conhece um pouquinho sobre a carreira do Mötley Crüe, sabe que a banda é conhecida pelos excessos da década de 1980, do sexo, drogas e rock n’ roll com a boa e velha dose cavalar de misoginia, dentro e fora dos palcos. E, aparentemente, criticar que os caras continuam disseminando machismo hoje em dia é inaceitável. Descobri isso na pele ao ousar dizer minha opinião sobre o mais recente show da banda no Brasil. Criticar o machismo inegável do Crüe me tornou a inimiga número um de fanáticos da banda, que se uniram virtualmente para me atacar e ameaçar. E isso me fez refletir sobre qual é o lugar da mulher no rock em 2023, em uma era na qual pautas sociais conquistaram um espaço nunca antes visto. 

Primeiro, vamos aos acontecimentos que me tornaram alvo da ira de muitos fãs do Crüe e roqueiros em geral: em março, a banda veio ao Brasil para um show conjunto com Def Leppard. Como jornalista de um dos maiores veículos especializados em rock e heavy metal no país, fui ao show para realizar a cobertura para o site e redes sociais. 

Naquele que foi meu primeiro (e, muito provavelmente, último) show do Mötley Crüe na vida, eu esperava não apenas fazer minhas anotações para uma resenha, mas com alguma sorte ter tempo de curtir algumas músicas que fizeram parte da minha adolescência, quando hard e glam rock eram meus gêneros favoritos. 

Por mais que eu já tenha cantado “Girls, Girls, Girls” entusiasmada no passado, ver a forma como a banda usa a imagem feminina ainda hoje cortou o brilho da nostalgia para mim. Eles insistem em explorar a objetificação da imagem das mulheres com as quais trabalham. As cantoras de apoio são colocadas no lugar de meros objetos de decoração no palco. Muitas vezes, elas só estão no palco para danças sensuais no pole dance ou amarradas em correntes, algo que me incomodou fisicamente. Naturalmente, isso não seria deixado de lado em um texto opinativo meu. 

O timing dos acontecimentos era perfeito: em pleno Dia da Mulher, 08 de março de 2023, publiquei dois conteúdos sobre a cobertura do show realizado na noite anterior. Uma resenha no site do Wikimetal, que citou em dois parágrafos a problemática e um vídeo no meu perfil pessoal do TikTok, no qual falei sobre como o machismo da banda quase estragou o show na minha experiência.

Sem o trecho no qual falo sobre minha resenha em texto e divulgo meu trabalho de jornalista, esse vídeo foi compartilhado por fãs da banda no Twitter. Apenas quando mensagens ofensivas começaram a aparecer nas solicitações do meu Instagram que descobri: meu TikTok viralizou e eu estava recebendo uma enxurrada de xingamentos e ameaças de violência. 

Para além da experiência da violência moral vivida, quando fãs revoltados prometeram “me desmaiar” quando me encontrassem em shows, sugeriram “banho de ácido” e outros horrores como punição pelo crime de falar minha opinião, veio também a certeza de que meus instintos estavam certos. Não demorou muito para que mulheres me mandassem mensagens agradecendo meu posicionamento, dividindo que sentiram o mesmo.  

Felizmente, recebi o apoio de muita gente. Além de outras jornalistas que já passaram pelo mesmo, atacadas por fã clubes revoltados diante de críticas e opiniões, diversos colegas de profissão e amigos se manifestaram em apoio ao trabalho que eu faço. Os fundadores do Wikimetal, Daniel Dystyler e Nando Machado, publicaram uma nota de repúdio que explica bem: não tem problema nenhum em divergir opiniões. Discurso de ódio e ameaças já são outra história.

E a partir de tudo que li e ouvi sobre meu conteúdo, em comentários anônimos ou conversas presenciais, foi inevitável pensar mais ainda sobre o lugar da mulher no rock e na sociedade.

Foi curioso reparar que as reações ao meu vídeo foram mais violentas do que ao texto, porque as pessoas costumam ler sem notar a autoria. E quando achavam que eu era um homem, as críticas eram mais tranquilas. “Esses caras que fazem matérias nem foram no show e fala [sic] muita abobrinha, eu estava no show e foi muito bom”, comentou um seguidor do Wikimetal, por exemplo. 

No caso do vídeo, porém, no qual apareço pessoalmente, as respostas eram mais violentas: o problema se tornava a minha pessoa. Logo começaram a insistir que eu certamente estava com inveja por não ser groupie dos caras de 60 anos, da minha aparência (afinal, se eu fosse “gostosa”, eu não estaria reclamando, né?), do meu suposto desconhecimento sobre rock. Outras pessoas já foram mais breves e me resumiram em ofensas de “vagabunda” para baixo, enquanto alguns me chamavam de puritana. 

Outra reflexão que tive foi: o que torna o Mötley Crüe supostamente blindado contra críticas? Para os fãs, frases de efeito de meninos mimados como “você não pode cancelar o Crüe” e um legado de décadas de machismo parecem justificar qualquer comportamento reprovável por parte deles ainda nos dias de hoje. Porque minha crítica não foi para os integrantes enquanto pessoas físicas (embora pudesse incluir isso, como sabemos) e nem ao passado que não muda, mas aos shows atuais do grupo. 

Se levarmos em consideração os comentários raivosos deixados nas minhas redes sociais, o show da banda perderia muito sem exibir mulheres como troféus. E pensar que as polêmicas sobre Vince Neil e cia não tocarem ao vivo seriam reais motivos para um downgrade na experiência do público… Na bolha purpurinada dos órfãos do glam, existe orgulho em ser sexista, e se engana quem pensa que só gerações mais antigas compartilham desse pensamento retrógrado. 

Isso me lembra um efeito bem descrito por Nikki Sixx. Em uma entrevista à Classic Rock, concedida em 2021, o baixista concordou que o comportamento da banda nos anos 1980 seria “muito provavelmente” considerado machista hoje em dia. “Assim como todo mundo também era. Na década de 1970, quando eu era jovem, era essa a mensagem que recebíamos e a gente estava imitando nossos heróis. Eram tempos diferentes. Você não pode reescrever a história!”, justificou. 

Aqui está o cerne da questão: como as reações desproporcionais à minha opinião mostraram, o público não apenas vê esse machismo como uma parte do show, mas como um estilo de vida aceitável e justificável. Do mesmo jeito que o Mötley Crüe aprendeu com os ídolos (e com a sociedade), esse vírus de alto contágio continua vivo em uma parcela considerável do público, que não hesita em perseguir mulheres que falam mal dos seus ídolos. Vocês tem certeza que o meu feminismo que é mimimi nessa história? 

Ao meu ver, conforme novas gerações chegam ao rock, é essencial que haja agora uma visão crítica do passado. Eu sou capaz de ouvir diversas bandas com músicas antigas problemáticas - Kiss, Guns N’ Roses e minha favorita, Scorpions, são alguns exemplos -, mas meu pensamento crítico de certo e errado deve se manter inabalado. Enquanto adultos, devemos ter a capacidade de admirar bandas sem colocá-las em um pedestal, sabendo discordar e reprovar comportamentos não mais aceitáveis.

Quando descrevi o sexismo como “o pior do rock oitentista”, foi muito comum receber mensagens de homens que se escondem atrás da suposta defesa da vontade das mulheres para estar na posição objetificada. Esse é um debate mais profundo e de diferentes visões mesmo dentro do feminismo. A grande questão aqui é: o direito das mulheres de se exibir e entrar no jogo dos homens foi ferozmente defendido, mas uma mulher que discorda é perseguida e atacada. Esse direito - o direito a pensar diferente do que os homens esperam de você - nos é negado. 

Em uma conversa, ouvi uma frase interessante. Uma pessoa mais velha, fã de rock e atuante nesse mercado, fez questão de enfatizar: “O rock não é seu”. Essa fala simples, na tentativa de fazer um ponto contrário ao meu, diz muita coisa. Realmente, o rock nunca foi das mulheres. Nosso lugar foi de groupie, de musa nos clipes, de fãs dedicadas, de esposas tolerantes com desrespeito e traições. De assunto para piadas cruéis e letras que insinuam violência e degradação, mesmo sem a intenção. Se pensarmos em mulheres pretas, nem bem vindas todas as mulheres são

Mas é interessante essa necessidade dos homens de demarcar território. O simples fato de levantar um debate sobre a necessidade de um mundo no qual as mulheres serão protagonistas, ao invés de meros bibelôs, já apavora alguns. No meu perfil pessoal, um cara fez questão de me dar instruções de como deve ser a militância pelos direitos das mulheres. “Seja feminista, mas não tente mudar as coisas dos homens. Não queremos viver em um mundo feminino”, escreveu. Podemos traduzir isso como: tudo bem querer alguns direitos, mas não tente tirar nossa posição de poder. Como ousam essas feministas ameaçarem o deleite masculino? 

De modo geral, foi impressionante a quantidade de pessoas sugerindo que devo mudar de profissão. Que não sou bem vinda no rock. Se quero ouvir e trabalhar com isso, sou obrigada a aceitar o machismo, que é parte do gênero musical, segundo me disseram. Por um breve milésimo de segundo, a síndrome de impostora que me persegue desde a primeira vez que um cara insinuou que eu não passava de uma poser quase venceu o jogo.

Mas é justamente porque sou uma voz na maré contrária que devo continuar exatamente onde estou. Sem meus questionamentos incômodos, quem vai levantar esse debate nessa cena ainda dominada por homens e pela mentalidade misógina, mesmo entre mulheres? Não é meu dever aceitar o inaceitável, muito menos me calar ou me desculpar por pensar da maneira que penso. 

Será que as pessoas acham que devemos aceitar também o racismo, a LGBTfobia e outros discursos de ódio dentro do rock e metal? Pasmem: a misoginia, em suas tantas formas de se manifestar, também é um ataque contra uma minoria social. Existe espaço para discordância e diferentes pontos de vista no debate feminista, mas a forma como fui atacada por dizer o que penso não tem outro nome. 

Vendo mais tarde o show do Jane’s Addiciton no Lollapalooza Brasil, no qual se repete o padrão de mulheres seminuas como decoração de palco, só conseguia pensar uma coisa: É esse o lugar que eles querem nos relegar. O lugar de coadjuvante, de coisa e objeto a ser ostentado, tal qual um carro de luxo. Nunca o lugar de indivíduo, de protagonista da própria história, de rebelde. Nosso poder ameaça a lógica dos homens na sociedade, e no rock não é diferente. Por isso, tão frequentemente, só somos bem vindas nessas posições de submissão. Muito além de uma brincadeira fanfarrona, fica o recado. 

Infelizmente, essa ainda é uma realidade. Ainda que o rock n’ roll seja filho de Sister Rosetta Sharpe, tão bem nutrido e cuidado por Janis Joplin, Joan Jett, Rita Lee e tantas outras, existe um trabalho enorme a ser feito para que o estilo se renove para a verdadeira rebeldia de ir contra um sistema que massacra mulheres, ao invés de corroborar com o mesmo. 

Por sorte, temos uma nova geração consciente que tomou essa responsabilidade nas próprias mãos, de bandas socialmente conscientes como Crypta aos aliados do Black Pantera, de novos nomes como Willow até aquelas que ousam mostrar o poder do rock para novos públicos, como Nita Strauss. Como já abordado nesta coluna, estamos prestes a presenciar o declínio dos tiozões do rock e tudo que representam. E, gostem ou não meus recém-adquiridos haters, eu não vou me calar.

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