O conceito de escalação de atores independente de suas etnias não era novo quando Hamilton, o musical criado por Lin-Manuel Miranda, estreou no off-Broadway em 2015. A prática – frequentemente chamada de color-blind casting (escalação cega para cores, em tradução livre) – inclusive já tinha passado pela própria Broadway em casos pontuais de Jesus Cristo Superstar, Les Misérables e Natasha, Pierre & O Grande Cometa de 1812. Mas quando Hamilton estreou, trazendo atores não-caucasianos no papel dos pais fundadores dos EUA, algo mudou.
Isso vem de um motivo muito simples: o que Hamilton fez, apesar de compartilhar certa definição em comum, não é color-blind casting, e sim praticamente o contrário disso. Para Lin-Manuel Miranda, a escolha de encontrar atores de etnias variadas para interpretar personagens reais e conhecidamente brancos não é cega. É consciente, proposital e fundamental, e uma decisão sem a qual Hamilton não seria o fenômeno que é hoje. E sem isso, a Broadway não teria ganho uma das maiores representações artísticas de diversidade de todos os tempos.
Para quem não está tão familiarizado com Hamilton, vale explicar que Lin-Manuel Miranda criou o conceito de sua peça para contar “a história dos EUA da época através dos EUA atual”. Baseando-se na ideia de que Alexander Hamilton tinha o hábito de escrever para escapar das adversidades da vida, Miranda percebeu o paralelo entre a vida do político e de diversos rappers, e quando decidiu compor a maior parte do musical em rap e hip-hop não haveria como escapar da escalação. Na maioria das montagens do musical, nomes como George Washington, Thomas Jefferson e Aaron Burr, políticos - brancos - muito familiares para o americano comum, são interpretados por homens negros.
Chris Jackson como George Washington
O diretor da produção, Thomas Kail, falou sobre isso com todas as letras ao The Guardian: “Nós nunca imaginamos a escalação de outro modo. Estamos muito conscientes do que fizemos aqui, isso não é color-blind casting”. E apesar de parecer um ato político afrontoso atualmente, em época de crescimento de políticas anti-imigração, a criação de Hamilton vem de muito antes. "Em 2009, quando Lin escreveu a primeira música, não havia Brexit, não havia Trump", relembrou Kail.
Com o passar do tempo, uma das frases mais icônicas da peça, “Immigrants - we get the job done” (algo como imigrantes, a gente coloca a mão na massa) , se tornou um dos momentos mais aplaudidos das apresentações de Hamilton ao redor do mundo. Isto porque, tradicionalmente, nenhum dos pais fundadores ou dos soldados da guerra de independência são estudados ou entendidos desta maneira. Em Hamilton, imigrantes são explicitados e exaltados, não apenas pelo seu protagonista, que foi para os EUA das Antilhas, como pelo francês Marquês de La Fayette, um dos protagonistas do primeiro ato.
Unindo etnias e nacionalidades de modo não apenas independente da realidade como da própria narrativa (as três irmãs Schuyler são interpretadas por uma filipina, uma negra e uma latina), Hamilton se tornou uma bandeira pelo orgulho da origem diversa dos EUA, um ideal que vive apagado hoje em dia. A maior importância disso, como a atriz de Angelica Renée Elise Goldsberry bem disse à Vogue, é explicitar “o sentimento de propriedade que todas as pessoas deveriam ter sobre a fundação deste país”.
Apesar de todos os acertos de Hamilton - e eles são muitos, não apenas de diversidade como de composição, estrutura, coreografia e a lista continua - o musical também não é desprovido de problemas. A exaltação de Alexander Hamilton como um imigrante torna necessário esconder uma das partes mais controversas (e debatidas) de seu histórico, um envolvimento no Atos sobre Alien e Sedição, que, em termos básicos, dificultava muito a vinda e a vida de imigrantes dos EUA. Enquanto isso pode ser atribuído à inspiração do musical na biografia do político escrita por Ron Chernow, o fato de que Hamilton pouco toca no tema de escravidão também é certamente questionável.
Mas a liberdade poética tomada por Lin-Manuel Miranda, que também distorce fatos da vida de Angelica Schuyler para fazer a personagem mais envolvida com o protagonista, faz parte da ideia de recontar a história dos EUA. Para Hamilton, a ideia é celebrar sua origem variada, e reimaginar a fundação do país de um modo muito mais celebratório por sua diversidade. Como o ator de Burr, Leslie Odom Jr., descreveu perfeitamente à Time, Hamilton "é sobre iluminar todos os jeitos que somos semelhantes, e não diferentes".