Em certo ponto da minha crítica do Born Pink, disco mais recente do grupo de k-pop BLACKPINK, lamentei o quanto as composições do álbum (especialmente a balada “The Happiest Girl”) sufocavam os talentos das quatro integrantes em versos tão genéricos e calculados que muitas vezes se contradiziam. Entre os muitos problemas que assombram o Born Pink, esse talvez seja o mais irritante: falta a ele a coesão expressiva de uma composição que esteja falando de alguma coisa. Não que eu esteja exigindo, veja bem, letras profundamente pessoais ou insights inéditos sobre a condição humana - a música pop raramente é o veículo para isso, e está absolutamente tudo bem -, mas estou buscando um básico de eloquência, a capacidade de se manter na mesma linha de raciocínio de um verso para o outro. Algum módico de respeito pela minha inteligência, enfim.
Pois veja só: Alter Ego respeita a inteligência do ouvinte. O primeiro álbum solo de Lisa, a rapper principal do BLACKPINK (e talvez sua estrela internacional mais óbvia), é uma obra pop de estrutura firme, que cola verso com verso, e faixa com faixa, usando o material confiável de uma visão de mundo e uma linha expressiva bem definida. E isso apesar do conceito essencialmente fragmentado no qual é fundado, segundo o qual Lisa se divide em cinco alter-egos diferentes para representar suas facetas como artista - os fãs certamente podem cair na(s) toca(s) de coelho de entender qual faixa pertence a qual dessas personagens, mas a brincadeira é secundária à missão de apresentar a tailandesa como uma popstar cativante, multitalentosa e expressiva.
Parte do segredo dessa apresentação, é claro, é cercar Lisa das pessoas certas para impulsionar uma carreira internacional que já é realidade pela popularidade do BLACKPINK ao redor do mundo. Daí a presença de gente como Raye (em “Born Again”), Ryan Tedder (“Rockstar”, “Rapunzel” e “Lifestyle”), Max Martin e Tove Lo (“New Woman”), ATL Jacob (“Fxck Up the World”), Jessie Reyes (“Moonlit Floor (Kiss Me)”), Tyla (“When I’m With You”), Ojivolta (“BADGRRL”) e StarGate (“Chill”) na produção e composição de grande parte das faixas do disco. São nomes que definiram nas últimas décadas, ou passaram a definir nos últimos anos, a paisagem do pop ocidental contemporâneo, e que garantem ao Alter Ego, já de cara, uma força sonora óbvia.
Com 13 faixas ao todo, o disco não quer passar mais do que alguns minutos sem fazer alguma coisa interessante - e as primeiras canções já deixam isso claro. A abertura com “Born Again” tira o máximo da linha de baixo e guitarra de Anthony Rossomando (conhecido por suas conexões com bandas como Klaxons e Dirty Pretty Things), que criam o clima disco da canção - mas não a permitem se tornar datada demais para o público jovem de Lisa - ao lado do pacote de cordas flutuantes que aparece no fim de cada refrão. Com seu batuque metálico que cai em um coro de R&B anos 2000 (pense mais Kellis, e menos Beyoncé), “Elastigirl” é o melhor momento de Lisa como rapper no disco; mas logo depois, em “Thunder”, esse pique de hip hop se transforma em eletro alternativo que não faria feio em um álbum do Crystal Castles.
Coletrista em todas menos uma canção do álbum (“Born Again” é, justamente, a exceção), Lisa aproveita o espaço para falar principalmente da vida nos holofotes, matéria primária de qualquer popstar que se preze. Seja no pique do rap ostentação - lá pelo final do álbum, vou confessar, as constantes referências a marcas de luxo vão cansando -, ou nas declarações confiantes e grandiosas de it girl do momento, ela encontra brechas para deixar recados para fãs preciosistas (“Eles querem a velha LISA/ Bom, ouçam as minhas m*rdas antigas”, em “Fxck Up the World”) e tecer elogios fofos para o seu suposto namorado (“Menino francês de olhos verdes me fez viajar/ No sotaque que cai dos seus lábios”, em "Moonlit Floor"). Nada revolucionário, enfim, mas são versos que provam que ela tem algo a dizer, quando a deixam dizer.
E é claro que muito do Alter Ego é calculado cuidadosamente para não revelar demais, não estragar a ascensão da sua artista no cenário pop, mas não dá para dizer que ele não corre riscos. Se não quisesse arriscar, Lisa não teria carregado o clipe de “Born Again” de simbolismo religioso, ou tampouco teria escrito e gravado uma canção (“BADGRRL”) em que professa ao seu novo casinho: “Posso ser sua garota má/ Não me trate como uma dama”. O jogo pop, no fim das contas, é justamente essa corda bamba entre se manter nas boas graças da indústria, estabilizar sua estrela em uma trajetória ascendente, e subverter as regras que a regem ao mesmo tempo. Odeio me repetir, mas: elemento de crime.
Embora não seja um grande álbum, enfim, Alter Ego cumpre a missão essencial de provar que Lisa é capaz de jogar esse jogo. Os próximos lances vão mostrar quão boa ela é em campo.
Ano: 2025
Produção: Max Martin, Stargate, Believve, Grant Boutin, DJH, James Essein, FnZ, her0ism, Cooper Holzman, Sam Homaee, Ilya, ATL Jacob, Abby Keen, Rob Knox, Mocha, Ninetyniiine, Ari PenSmith, Raye, Rykez, Hendrix Smoke, Sammy Soso, Ryan Tedder, Shintaro Yasuda, Ojivolta, Andrew Wells