Lady Gaga em foto promocional do Mayhem (Reprodução)

Créditos da imagem: Lady Gaga em foto promocional do Mayhem (Reprodução)

Música

Crítica

O prazer de ouvir o Mayhem é entender que Lady Gaga é incapaz de se esconder

Artista pode ter sido ultrapassada na corrida pop, mas ainda modela coragem artística rara

Omelete
5 min de leitura
07.03.2025, às 11H28.

É preciso ser a verdade, ou você se torna uma mentira/ Furando a pele como um espinho, canta Lady Gaga em um verso de “Shadow of a Man”, a faixa do Mayhem que mais se alinha à tradição Gaga de falar de sua relação com a música e o estrelato pop nas próprias composições. Mayhem, ao que tudo indica, não foi um álbum fácil de se fazer - em entrevistas de promoção do disco, a artista falou de sua trepidação em retornar para o cenário pop cinco anos depois do Chromatica (2020), da luta contra a obsolência que define muito do trabalho da popstar após um certo período inicial de dominação cultural, e da forma como o noivo Michael Polansky a incentivou a mais uma vez mergulhar nas trincheiras de uma guerra que Gaga já ganhou e perdeu muitas vezes.

O caminho para navegar esse campo de batalha, no entanto, é um só - e ela sabe muito bem disso. Os deuses cruéis do contínuo pop, encarnados no público que abraça ou rejeita cada passo de suas divas favoritas, podem até ter suas expectativas e julgar em cima delas, mas uma popstar vive ou morre como artista, na verdade, pelo quanto se revela em sua música. Mayhem é um retorno à casa para Gaga, nesse sentido, porque nos lembra o que a fez realmente excepcional lá no final dos anos 2000, quando o mundo virou de cabeça para baixo por ela: a exuberante vulnerabilidade que ela encontra nos padrões familiares da música pop, a sua incapacidade crônica de negar uma influência, rejeitar um exagero, virar as costas para o que soa bem. “É preciso ser a verdade, ou você se torna uma mentira”.

Mayhem é um triunfo, acima de qualquer coisa, por ser a verdade. Ele é, por exemplo, um álbum de paixão: aos 38 anos, Gaga acredita que achou sua alma gêmea improvável em Polansky, um matemático e empresário que pouco tinha a ver com a cena musical antes de conhecê-la. Aqui, ele não só assina a produção executiva do álbum, como também é creditado ao lado da noiva pela letra de sete faixas (metade das 14 que formam o disco) - perfeitamente lógico, portanto, que o Mayhem se prove um álbum de romantismo aflorado, mas maduro, que narra um amor capaz de adentrar nas entranhas sombrias de uma psique traumatizada e sair de lá com uma dedicação irrefreável ao outro.

Em “How Bad Do U Want Me”, por exemplo, Gaga canta sobre um amante que normalmente escolhe “meninas comportadas, mas que ainda sente o coração fraco por ela. Os ecos de Taylor Swift que os fãs imediatamente ouviram na estrutura melódica da canção, e até em seu tema (o primeiro verso do refrão, que professa que o interlocutor odeia o ‘crash’, mas ama o ‘rush’ do afeto da narradora, é francamente remanescente de “Blank Space”), é uma nota justa e muito provavelmente proposital - mas Gaga não é boba, e trata de esticar vocais e sintetizadores, lá perto do terceiro refrão, para evocar também as progenitoras desse tipo de canção de relacionamento feminino, estejam elas nos anos 1990 (há algo de Paula Abdul ali) ou algumas décadas antes disso (Stevie Nicks, é você?).

Com o Mayhem, como sempre foi o caso nos bons álbuns de Gaga, o buraco pop é mais embaixo. Todo o miolo do disco, por exemplo, chupa ideias do pop rock setentista de Blondie, Prince, David Bowie e Chic - uma era de sintetizadores cintilantes e guitarras rítmicas, de entregas vocais teatrais e glam inigualável, no qual as linhas entre gêneros nunca foram tão finas, e a separação entre rockstar e popstar nunca pareceu tão fútil. Daí que “ZombieBoy” poderia muito bem ser declamada no monotom que Debbie Harry eternizou em “Rapture”; que a guitarrinha suja de “Killah” seja a cara de “Kiss” e outros clássicos de Prince; e que “Don’t Call Tonight” misture melodia de balada hair metal com uma guitarrada digna de Nile Rodgers

Essa também é a verdade de que estamos falando, afinal. Mayhem alardeia cada uma de suas referências em voz alta, sem medo de esfregá-las na nossa cara, porque não tem vergonha delas - pelo contrário, inclusive: Gaga, como todo fã de música pop deveria fazer, reza no altar de cada um dos artistas que a precederam. Como faz em todos os grandes momentos da carreira desde o The Fame, ela funda o Mayhem em misturas supostamente profanas dessas referências, como se tentando provar o tempo todo a validade do caldeirão de ideias que se move dentro de sua cabeça. Por isso que “LoveDrug” e “The Beast” ganham solos de guitarra, “Killah” inclui um baixo sintetizado que faz as vezes de bridge, e tudo isso chega aos nossos ouvidos aparentemente infiltrado por aquele medo, que todos sentimos, de que nossas ideias só façam sentido para nós.

E é claro que é tudo aparência. O medo está lá, mas Gaga nunca o deixa vencer… e ainda bem, porque o arrepio que sobe pela espinha nos melhores momentos do Mayhem vem do prazer de ouvir uma artista que se recusa a se esconder. Aqui está ela, fortalecida em seus instintos e suas paixões, mais uma vez disposta a encarar o que jogarmos na direção dela, mas indisposta a se mover um centímetro para fora da rota em que ela acredita. É um ato de coragem artística indiscutível, que fortalece um disco imperfeito e talvez até ultrapassado - mas nunca, sob nenhuma circunstância, mentiroso.

Nota do Crítico
Ótimo
Mayhem
Lady Gaga
Mayhem
Lady Gaga

Ano: 2025

Produção: Bruno Mars, Cirkut, Gesaffelstein, Andrew Watt, D'Mile, Lady Gaga

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