O episódio piloto está entre as muitas artes televisivas que se perderam com o advento do streaming. E pudera: num mundo onde o público está acostumado a consumir horas de conteúdo em uma sentada só, no formato de maratona popularizado pela Netflix, nem faz muito sentido criar um piloto no molde clássico, com apresentação integral dos personagens e das complicações que definirão sua jornada pela temporada. Mesmo nos lugares onde o lançamento semanal voltou a ser a regra, normalmente a estreia de uma série oferece dois ou três episódios de uma vez, esticando assim o espaço que os roteiristas têm para fazer toda a introdução de premissa e, basicamente, nos convencer de que há carne o bastante nesse osso. Quando não é assim - na HBO, por exemplo -, por fim, o episódio que seria o “piloto” às vezes ganha permissão para ser bem mais longo do que o padrão.
Duster não faz absolutamente nada disso. Escrito por J.J. Abrams e LaToya Morgan no formato rígido da 1 hora de televisão (ok, talvez o streaming tenha permitido uns minutinhos a mais, que seriam comidos pelos comerciais na TV aberta), e lançado solitariamente no catálogo da HBO Max na última quinta-feira (15), o episódio piloto da série tem algo de quase nostálgico em seus procedimentos e seu desenho narrativo. Batizado de “Baltimore Changes Everything”, o capítulo começa com cenas prolongadas que nos apresentam os protagonistas: a agente do FBI Nina (Rachel Hilson) é entrevistada por superiores e recebe a notícia de que vai ser transferida para o Arizona a fim de investigar a organização criminosa de um chefão intocável; e o motorista Jim (Josh Holloway), que trabalha para o tal chefão, despista capangas de uma organização rival em perseguição alucinante pelo deserto, à bordo do seu Duster vermelho-cereja.
As duas cenas também aproveitam para evidenciar que Duster se passa nos anos 1970. A entrevista de Nina, filmada com sobriedade concentrada pela diretora Steph Green (The Americans, Watchmen), deixa claro que a agente é uma das primeiras mulheres negras no Bureau, e que ela terá que enfrentar o racismo de seus colegas durante a investigação; a perseguição de Jim, na qual Green se solta para incluir várias brincadeirinhas conceituais, se delicia nas imagens icônicas dos carros antigos e cromados derrapando e levantando poeira laranja pelas estradas do Arizona. Ao fim dessas duas sequências introdutórias, o espectador já sabe que tipo de série Duster acredita ser: um thriller criminal de sotaque do Sul dos EUA e pé no acelerador, que olha com lentes saudosas - mas, também, francas - para os clássicos do gênero dos anos 70.
O que se segue, de certa forma, é a burocracia de preencher os detalhes desse desenho inicial, introduzindo personagens secundários cheios de detalhes excêntricos, desenvolvendo as funções que cada um dos protagonistas busca desempenhar em seus trabalhos, como os seus destinos se cruzam, e quais forças definem a luta que eles vão travar juntos. Enfim, uma aula de roteiro para iniciantes - mas lecionada com bastante charme. Abrams e Morgan apostam alto na extravagância desse mundo do crime sulista estadunidense, se permitindo pequenos passos na direção do grotesco em situações (em certo ponto, Jim precisa usar suas próprias mãos para reiniciar o coração de um homem com o peito aberto numa mesa de cirurgia) e caracterizações, mas nunca perdendo de vista a ideia de aproximar esse mundo do nosso através dos dilemas que eles enfrentam.
Exemplo perfeito é o gângster vivido por Keith David. Duster não deixa de se apoiar nos traços fortes que caracterizam o estilo de atuação do venerável vencedor do Emmy, aproveitando-os para transformá-lo no vilão ideal para sua história de crime suja dos anos 1970, mas David também o colore com uma ponta de tédio existencial e angústia familiar que o fazem humano. Na mesma toada fica o agente Awan (Asivak Koostachin), um colega nativo-americano de Nina no FBI, que expressa insegurança e determinação de forma dinâmica em suas poucas cenas no piloto, e com isso já conquista a aliança do espectador. É testamento da potência dramática de Abrams e Morgan - mesmo que alguns diálogos soem forçados para o lado da exposição, fica claro que eles dão esses passos mais apressados a fim de criar um mundo que nos fisgue sem demora.
Ademais, sejamos sinceros, não é difícil cair de amores por Duster quando Josh Holloway está atrás do volante. Se os criadores da série já confessaram que ela nasceu da vontade de trazê-lo de volta para a televisão, não é à toa - o ator é mesmo uma presença de cena especial, e ressurge aqui exatamente com os maneirismos que os fãs de Lost se lembrarão de amar. Seja pela colocação corporal impetuosa (ele anda deixando um rastro de olhares atrás de si), pelo sorriso cínico que luta em se espalhar pelo rosto ou pela entrega arrastada das falas, traindo uma suspeita aqui e uma hesitação ali, Holloway é o galã beijado pelo Sol do público médio, o cara da casa ao lado que ainda assim emana uma aura de queridinho das câmeras. Estamos aqui por ele, mas também com ele.
Ao redor dele, Duster sabe que não precisa fazer muito além de nos dar uma boa história. Que a arte de criar essa boa história tenha meio que se perdido com o tempo… bom, isso é só um bônus.
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